Quando é preciso ensinar o que é dor
*Use fones de ouvido para escutar o áudio melhor.
Quanto desafio reside na ciência de interpretar pessoas, decifrar onde a linguagem não se expressa com clareza e a comunicação parece se desviar ou se perder do seu percurso natural. E para quem ama um filho com uma intensidade absurda e quer fazer valer este amor acolhendo e protegendo, uma falha pode parecer fracasso e é preciso um equilíbrio constante para não se deixar abater.
A queimadura na mão
Domingo à noite, após passarmos o dia todo juntos em casa, vejo um machucado na mão da minha Milena. Olho e sinto um frio na barriga: era uma queimadura e já com bolha. Como pode se eu nem vi ou ouvi ela reclamar de dor? Ninguém se queima sem sentir, ninguém sente tanta dor sem se expressar. E mesmo sabendo que a tolerância para dor nela é maior, aquele tipo de ferimento com certeza trazia muita dor.
Procurei saber e claro, ela negou o machucado e a dor, nem me deixou chegar perto. Milena não gosta de ser consolada e este foi um grande aprendizado para mim no início. Imagina seu bebê caindo e ralando o joelho e você não poder abraçar, dar beijinho. Mas como respeito tem sido meu grande professor, aprendi a oferecer meu apoio e dar a assistência do jeito que ela quer.
De repente ao ver aquela queimadura, pude entender o motivo dela ter ficado irritada “do nada” no meio da tarde… Ela estava, na verdade, sentindo dor. Eu poderia apenas dizer que ela não sentiu nada, que o Autismo traz na disfunção sensorial a hipo (pouca) ou hiper (muita) sensibilidade tátil. Mas, na verdade, o problema aqui foi a comunicação que, mais uma vez, veio sem palavras e eu não percebi e, é claro, me senti uma péssima mãe.
Ensinar a pedir ajuda
Sim, o comportamento é algo muito difícil de se ler, mas na maioria das vezes ele expressa mais do que as palavras. E isso vale ainda mais no caso do Autismo onde a comunicação, mesmo que a fala esteja presente, é como uma via de mão única ou indireta, em que a mensagem não chega inteira para o autista e, na maioria das vezes, nem volta para você. É uma comunicação sem troca, eu diria. O que não é exclusividade do Autismo, mas é sim, uma forte característica desta síndrome.
Pois bem, mesmo após todos estes anos não aprendi a ler o comportamento da Milena. Sim, ela evoluiu de uma criança com a possibilidade de um Autismo não verbal para uma tagarela que adora falar com todo mundo. Mérito dela mais que nosso, mas ainda assim tem tanta coisa que precisamos alcançar. Como pedir ajuda, por exemplo, ou identificar dor, fome, frio, desconforto. Ela até consegue 80% do tempo, mas tem que conquistar, para sua própria segurança, o restante e conseguir pedir ajuda sempre.
Entenderam a pressão? A nossa constante busca pelo próximo nível e o quanto ele é importante? Não dá para acomodar quando há tanto em jogo.
Comportamentos opostos
Para dificultar esta coisa de interpretar a pessoa, Milena tem alguns comportamentos que são opostos. Por exemplo: ela odeia bagunça, desde bebê ela fazia todo mundo pensar que eu era uma mãe muito brava, pois ela parecia assustada quando derramava ou derrubava alguma coisa. Hoje em dia ela tem que limpar imediatamente o que suja e se vê um quebradinho mínimo em algum objeto, ela pede para arrumar ou joga fora na mesma hora. Uma linha sobrando em uma roupa, uma imperfeição qualquer faz com que ela se desorganize.
Por outro lado, ela parece gostar de um mal feito. Ela morre de rir quando algo sai errado e tende a dizer que a culpa de qualquer, eu digo qualquer coisa que está errada é dela. Assume a culpa como se fazer algo errado lhe desse prazer. Assim, se você perguntar quem pegou, quebrou, sujou, escondeu, bateu, empurrou ela vai dizer que foi ela com um sorriso no rosto. É como se fosse um impulso e eu nem preciso dizer em quantas confusões isso já nos colocou independente do quanto nós temos trabalhado isso nela.
E essas contradições não param por aí e, na verdade, merecem um post à parte: ao mesmo tempo que ela vai gritar e brigar horrores para tirar uma farpa do dedo ou cortar a pelezinha ao redor da unha que está inflamando, ela vai simplesmente não demonstrar sentir uma queimadura e para nós sempre teremos a dúvida: ela não sente ou ela não expressa que sente?! A dificuldade é em sentir, reconhecer ou expressar a dor?
Autismo e processamento sensorial
No caso da queimadura, não canso de me espantar. Ela primeiro escondeu, negou e quando eu perguntei mais a sério, a única coisa que ela disse foi: “foi minha culpa mãe”. Por mais que eu perguntasse, investigasse, não consegui descobrir o que aconteceu, já que ela só cozinha comigo por perto. Não é a primeira vez que descobrimos um machucado na nossa menina sem que ela tenha nos contado a respeito. E por mais que me traga culpa e tristeza eu preciso aproveitar estas ocorrências, avaliar como uma lacuna da comunicação que precisa ser trabalhada e ensinar a ela não só a reconhecer a dor, mas, sobretudo, contar o que aconteceu e pedir ajuda.
Ela está bem, está cuidada, graças a Deus não foi nada grave, mas fica a reflexão. Para saber mais sobre processamento sensorial veja os posts listados abaixo, quanto mais você puder entender sobre o assunto vai poder ajudar e compreender não somente as pessoas com Autismo, mas muita gente que tem algum nível de comprometimento sensorial e nem sabe, talvez até mesmo você.
Cris, Bom dia! Bom ler suas colocações. As questões sobre a integração sensorial, no caso do TEA as disfunções dessa ordem, são comuns à eles entretanto tão singulares. Essa é uma grande incógnita para nós, dar conta de ‘medir’, as nuances para cada autista. Somada a questão de ‘ler sinais’ tanto nós, quanto eles é uma habilidade que precisamos aprender e treinar todos os dias. A dificuldade deles em ler os sinais dos outros, que vão além das palavras; para nós que parece tudo tão óbvio e automático, às vezes passamos sem nos dar conta de pequenos estímulos. Grande abraço,… Leia mais »
Oi Eliana, que coisa boa a sua participação, ainda com um comentário tão rico e coerente. Obrigada viu?
Acho que a gente consegue entender algumas coisas no autismo e a respeito das dificuldades, mas na prática, no dia a dia, a gente tem que “entrar” no modo deles funcionarem para conseguir ter empatia e isso é mesmo bem complicado e uma hora ou outra a gente vai falhar né? E sim a gente tem mesmo que treinar constantemente.
Um super abraço com muita gratidão.
Oi Fausta, estou maravilhada com seu blog e me vendo em tantas situações. Tenho uma filha de 3 anos que não fala e estamos na busca por um diagnóstico (provavelmente autismo).
Já chorei mt e muitas dúvidas me assombram, mas pessoas como vc ajudam mt nesta busca por respostas. Obrigada infinitamente por suas palavras e compartilhamentos, isso nos ajuda demais.
Este post em especial fez eu ver minha filhinha; totalmente oranizada com td, desde pequena apaga luz ao sair, fecha gavetas e arruma coisas, em contrapartida adora uma arte, uma bricadeira “errada”.
Obrigada imensamente.