Eu tenho Autismo
Eu tenho o privilégio de conviver no mundo virtual e no mundo real com famílias de pessoas com Autismo. Me voluntario a contribuir com minha experiência e o pouco que eu sei e assim, tenho tido o prazer de me comunicar com essas pessoas e trocar ideias.
Recentemente uma mãe que acabou de receber o diagnóstico me procurou, muito aflita pelo recente diagnóstico do filho e em meio ao confuso momento de angustias e incertezas, nem ela conseguia explicar suas dúvidas. Então eu pedi, faço isso às vezes, que ela me fizesse perguntas e eu as responderia como a uma entrevista, e assim fizemos.
Sempre fui voluntária, desde muito, muito tempo… e não é por ser boazinha, caridosa… nada disso. A gente realmente recebe muito mais do que dá. E foi assim que no questionário que esta mãe me enviou, eu acabei refletindo sobre muitas coisas que fiz ao longo destes quase 13 anos. Uma das perguntas era: eu conto para meu filho que ele é autista?
Eu não dou muitos palpites sobre o que cada um deve fazer. Meus filhos adultos sabem disso, eu não gosto de tomar decisões pelos outros o que eu faço é dizer como eu fiz para que a pessoa tenha acesso a um outro ponto de vista. Quanto mais informações, quanto mais versões diferentes da mesma experiência ela tiver, será melhor para que ela tome sua própria decisão.
O que eu fiz, de forma muito particular, foi trazer o Autismo desde muito cedo para a minha conversa com a Milena, tratando de forma natural do que é natural para mim. O Autismo é uma condição que traz limitações e que também traz uma riqueza de aprendizagens para todos que convivem com ele. Sempre digo e repito, se fosse para tirar o Autismo da Milena eu tiraria… porque eu sei que é o que ela quer e deseja. Se fosse para tirar o Autismo de algumas pessoas que eu conheço eu não tiraria porque eles são muito felizes sendo do jeito que são e deixam isso bem claro. Mas como a possibilidade tirar não existe, eu parto do princípio que dá para ser feliz do jeito que for, desde que a gente se assuma como é.
Na tentativa de fazer a Milena entender o que acontece com ela, eu traduzo o mundo e os fatos o tempo todo. Mostro as pessoas tristes, felizes, bravas, com pressa. Brigando, discutindo, brincando e namorando…. Explico os prováveis motivos e mostro o mundo que ela não capta sozinha e junto eu mostro nas suas reações o que é do Autismo e o que não é. Torne-se um especialista não no Autismo, mas no seu filho… eu sou. Me dê a Milena e eu te digo o que ela tem e como ela está se sentindo e provavelmente vou te dizer o porquê, raramente eu não consigo.
Esta semana, ela começou de novo com a obsessão por objetos das colegas. Ela me deixa louca quando quer algo de alguém. Ela cisma com o botão da camisa, com o apontador, com o bordado, o anel, a tiara, o tubo de cola, a mochila… Todas as estratégias possíveis foram tentadas e muitas vezes funcionam. Mas tem sempre um item que escapa. Eu posso comprar o mesmo item, da mesma marca, cor, tamanho, textura e ainda assim ela pede para trocar o que ela ganhou novinho por aquele que ela quer tanto. Obsessão é a palavra.
Desde a semana passada ela vem falando em um bendito tic-tac de prender cabelos da coleguinha de sala. A menina tem Autismo também e só fala inglês. Na tentativa de parar de vez com isso (um trabalho de base já vem sendo feito) eu disse que não há o que fazer, que ela tem que se conformar e ponto. Comprei meia dúzia de prendedores iguais já sabendo que talvez não resolvesse e claro, não resolveu.
Ontem ela estava no auge do desejo, queria muito e pedia o tempo todo o tal prendedor. Eu acolhi, disse que entendia, mas que não havia nada a fazer. Ela então escalou a tristeza, nervosismo, agitação e o que nos passado teria se transformado em uma grade birra, acabou se tornando um diálogo lindo:
– Por que que essas coisas vem para minha cabeça mãe?
– Porque seus olhinhos gostam de olhar, você fica um tempão olhando mais e mais, até que você queira aquilo para você. Todas as pessoas são assim, a gente quer coisas que achamos bonitas para a gente, mas a gente consegue entender que não pode ter tudo.
– Por que que meu coração não entende? (eu quase pedi para morrer né?)
– Porque você tem Autismo e eu acho que por isso você sente essa vontade muito mais forte do que as outras pessoas. E fica pensando nisso muito mais tempo do que as outras pessoas. Precisa aprender a pensar em outras coisas, tirar isso da sua cabeça.
– Eu quero aprender a tirar da cabeça… e começou a chorar e quando ela chora, não gosta de ser consolada (imaginem como eu fico) e ela suspira ou melhor, respira com a boca como se quisesse segurar o choro… ela faz isso desde que era um bebê…
Até eu conseguir redirecionar levou tempo e mais tarde ela voltou a tocar no assunto sem tanta dor e mais uma vez me mostrou que entende melhor o que o Autismo lhe impõe e está disposta a aprender a controlá-lo.
Fico imaginando o quanto seria difícil se ela não falasse. Seria daqueles episódios que todos diriam: “eu não sei por que ela está assim, nada mudou na rotina”, “ela fica irritada de repente”,…
Pois bem, a Milena sabe que tem Autismo, é um saber que cresceu com ela e hoje ela consegue dizer para qualquer pessoa que olha para ela estranhando que “ela tem Autismo”, pois ela ainda fala muito na terceira pessoa e esse é um dos momentos pois foi o que me ouviu dizer para as pessoas quando ela avançava em um saquinho de pipoca alheio ou quando gritava em público e eu fazia cara de paisagem e dizia na minha voz baixa e calma: tudo vai ficar bem, ela tem Autismo. De tanto me ouvir dizer hoje é ela que se justifica, esperta né?
Sei que ainda vou ouvir ela usando o pronome certo e dizendo com naturalidade por aí. Eu tenho Autismo. E espero mesmo que isso seja aceito como justificativa para sua diferença e nunca como motivo para discriminações!
Nem de longe tenho a pretensão da certeza de ter feito a coisa certa, nem de poder dar receita de nada, mas algumas decisões se mostram muito acertadas ao longo do caminho, dentre elas fazer a Milena consciente de que ela tem Autismo e de que o Autismo é apenas uma parte e que não a define.
Ela sabe que tem que se esforçar – e se esforça – muito mais para lidar com suas limitações e sabe também que não pode usar o Autismo como desculpa para nada, embora tente às vezes (e eu acho lindo quando ela tenta me enganar, pode isso?).
É isso pessoal. O endereço muda, o país e o idioma mudam, mas as velhas manias permanecem nos desafiando. Lágrimas, momentos de tensão e agitação e a gente segue se empenhando em fazer o melhor que conseguimos.
Obrigada por me ler, que seja um ponto a mais para vocês refletirem também 🙂
Lindo texto, como sempre, termino de ler emocionada!!!!
Uma das minhas lutas atualmente é a fala. Sei que isso não vai mudar a condição da minha filha, mas acho que conseguirei entendê-la um pouco mais.
Enquanto isto vou me especializando na minha florzinha. E vê-la desabrochando em cada pequena conquista enche meu coração de esperaça!!!
Sigo na torcida por vocês!!!
Grande beijo
Elisa
Também sigo torcendo por vocês Elisa, pode contar comigo. Continue brincando bastante com ela, estimule a imaginação e dê muito modelos de falas simples, com poucas palavras e qualquer som, comemore… Tente o PECs.
Eu sei da sua ansiedade pois eu também vivi isso, espero que as conquistas continuem. Me conta! :] Beijo!
Querida Cristina, me encantou a beleza de pensamento no discurso de Milena – que linda princesa! Mais uma vez um texto precioso. Um beijo carinhoso para as duas 🙂
Sim Elisabete, essa beleza que às vezes o mundo perde por não dar voz a tantas pessoas que estão fora do padrão mas que tem tanto a contribuir não é? Eu não sei se ainda vou conseguir ver este mundo vivendo o prazer da inclusão, mas rezo para isso.
Obrigada querida pela presença! Obrigada!!!
Que lindo relato! Nunca pensei sobre a conscientização da própria pessoa sobre sua condição, o que irá contribuir enormemente para o se auto conhecimento, facilitando também seu relacionamento com o mundo externo. Vc faz muita diferença em nossas vidas. Muito obrigada!
Obrigada Isabel!
Todos nós temos este papel de tocar vidas com nossa presença. Ultimamente você tem tocado a minha ao me permitir tocar a sua!
Um abraço carinhoso.
Cris
Boa tarde !
Meu nome é Maria, meu filho tem 3 anos e foi diagnosticado com tea a 2 meses meu coração está em pedaços ! Pode me ajudar !! Estou desesperada , seu texto me ajudou muito…mas a minha tristeza é imensa …
Enviei um email para você Maria.