Altos e baixos do Autismo
Pela manhã descubro Milena acordada e quietinha em sua cama, coisa rara, ela jamais fica muito tempo sem me solicitar. Dei meu bom dia e fui lá encher ela de beijo, adoro as manhãs e os nossos momentos “gudádas” na cama, encho ela de beijo, ela dá bom dia e pergunta se eu dormi bem, ontem, perguntei por que os pezinhos estavam na cabeceira e ela respondeu sem responder: “coloca o seu também e aí vai ficar um tantão de pepés”, atendi ao convite e ficamos ali curtindo o momento, entrelacei minha mão na dela e ficamos brincando de mãos e pés.
Estes momentos de doçura são uma constante em minha vida, eles aparecem do nada e colorem o meu dia. Nem parecia que na noite anterior a gente tinha vivido uma hora de angústia… a Milena tem umas crises chatas, já contei pra vocês algumas vezes. Ela fica muito nervosa, grita, ameaça bater na gente, às vezes dá um tapa (não em mim)… como já disse vou nomeando suas emoções e suas ações: “você vai quebrar o copo” (ela para), “você está gritando e vai ficar gritando sozinha porque eu não vou ficar pra ouvir seus gritos” (ela para), e ela segue ameaçando rasgar o papel, ou derramar a água, fazer algo que realmente nos atinja e mostre ao mundo que ela tá brava e depois chora, chora, chora. Eu ataco no carinho, voz mansa, lembro coisas boas e com o tempo ela vai acalmando.
Quando complica
De vez em quando a coisa fica mais complicada e a gente tem que intervir segurando ela, meio que imobilizando mesmo. Não conseguiria jamais descrever o tamanho da minha dor, tristeza, desânimo, nem sei que nome dar à explosão de sentimentos dentro de mim quando isso acontece. Mas, são momentos raros em que a ansiedade está alta ou então quando ela fala com as pessoas no Brasil… o tal Skype é uma benção mas é também um suplício, pois quando ela começa a falar não quer parar e quando para sente mais o peso da saudade e aí, quase sempre que começa uma crise.
Eu me espanto a cada dia com minha capacidade de enfrentar os desafios junto com a Milena. Me pego surpresa com uma paciência que eu nunca imaginei ser capaz, como ficar por três horas seguidas em um parque infantil, vendo minha menina com tamanho de moça (1,56m e 44 kg), mas com desenvolvimento ainda muito imaturo, querendo brincar com os pequeninos, tentando se articular para caber nos balanços e nos brinquedos. Paro as bolinhas de sabão do mundo ao ver o pavor que elas despertam, me forço a vencer a barreira da língua para explicar a alguém o que ela está tentando dizer ou fazer.
Estranho que a gente consiga fazer tanto e se sentir não fazendo o suficiente! Eu não carrego culpas nem fico alimentando comiseração, não é isso, mas é estranho demais sentir que tudo que temos não basta.
Saldo positivo
O Autismo é um transtorno dos extremos, ao mesmo tempo em que encanta, desafia, enriquece a vida da gente com análises preciosas e valores que a gente não tinha antes. Mas ao mesmo tempo nega, tira, impede. Adoro ver na Milena doçura, pureza, sensibilidade… a capacidade que ela tem de ser doce e tudo o que a faz especial. Mas também é doloroso quando vejo minha filha sofrer por não saber lidar com seus sentimentos ou por não conseguir fazer coisas simples que uma criança faz. Odeio quando ela me olha pedindo ajuda para algo que eu sei ser impossível ajudar…
Ultimamente tem acontecido com frequência, essa coisa dela se desequilibrar diante de uma frustração e querer bater, gritar, atingir alguém com sua raiva, ou melhor, pedir ajuda, compartilhar… A gente também tem rompantes assim, temos os mesmos ímpetos mas eles são muito bem moldados pelo filtro da aceitação social. As pessoas com Autismo são autênticas na hora da dor, da alegria e também da raiva.
Por isso eu vou guiando a sua impulsividade: – Filha você vai me bater, é isso? Você quer que eu fique triste? E isso faz com que aos poucos ela se organize e volte a ser a minha doce Milena. Depois vem a sessão desculpa, ela pede um milhão de desculpas, depois vem a sessão promessa e ela promete que nunca mais acontecer e os sorrisos voltam, as gargalhadas voltam e o sol brilha no meu coração outra vez.
Diante de tantos altos e baixos eu aprendi a curtir um pouco este balanço, a tirar o melhor proveito possível quando estou no alto. O saldo é sempre positivo, pois a gente segue aprendendo. Não consigo abandonar minhas lentes coloridas que me permitem ver o mundo desse jeito que eu gosto de ver e curtir mãos e pés e ver nas pequenas coisas o bom que é estar viva.
Ilustrando pra terminar: descascando uma cebola ontem descobri na camada mais interna um coração. Jurei ser um sinal da vida me mostrando que até mesmo naquele momento em que as lágrimas são inevitáveis é possível encontrar coisas simples criadas por Deus pra nos fazer voltar a sorrir.