Milena e a TV
Milena está assistindo televisão, pode parecer estranho, mas é uma conquista. Ela teve umas fases de gostar do Cocoricó, Palavra Cantada, Sítio do Pica-Pau Amarelo, Backyardigans, mas era uma mania, quase uma fixação e que depois passava.
Mas agora, ela está assistindo a vários desenhos com atenção e conseguimos perceber que ela está curtindo. Quando termina o desenho ela faz um milhão de perguntas sobre o que viu e isso nunca tinha acontecido antes. É sempre o Discovery Kids e os seus preferidos são, George, o curioso; Princesa; Sid, o cientista (esse eu adoro também); Lazytown; Amigãozão e tem outra coisa. Quando termina um episódio e mudamos o canal ela já antecipa o que vem em seguida: – “deixa aí papai, ela gosta do migãozão” falou pro pai outro dia em tom de bronca.
O jeito de assistir TV é um caso à parte, fica em posições estranhíssimas. De ponta cabeça, pernas para cima deitada no chão ou bem perto da TV e sempre tem que estar mastigando alguma coisa, a blusa, a ponta da almofada, a mão, o cabelo e não pensem que me dá sossego para fazer outras coisas não, fica me chamando para sentar perto dela e se eu saio ela vai atrás e pede: ”vem mamãe, ela não gosta de ficar sozinha”. Este hábito vai me exigir certo controle, mas tenho esperança de que contribua de alguma forma com o desenvolvimento desta telespectadora especial.
Sinais precoces
A respeito desta necessidade constante de ter alguém por perto, já disse por aqui que se deve ao conselho do nosso primeiro terapeuta, João Luiz, que cuidou da Milena ainda bebê. Ele nos avisava quando ela se isolava por isso nos pediu para estar sempre perto dela, nunca deixar que este isolamento seguisse em frente, interferíamos pontualmente. Ela começava a agitar as mãozinhas, deitada de costas no chão com um olhar perdido e nós já chamávamos a atenção. Eu fiz a minha parte (acho que exagerei) e não a deixava sozinha, sempre que ela se posicionava olhando as mãozinhas ou empinando a cabeça para trás eu chamava a sua atenção, brincava, apertava, pegava no colo. Seria até cômodo deixar aquele bebê tão quietinho no mundinho dela, mas o diagnóstico precoce tem muitas vantagens e uma delas é justamente nos mostrar que aquilo era isolamento e não quietude.
Depois de um tempo, já no Rio, andei surpreendendo-a com um olhar fixo e a neuropediatra nos disse que podia ser uma convulsão conhecida como convulsão silenciosa em que o indivíduo tem ausências quase imperceptíveis. Aí mesmo que eu não desgrudava mais dela e deu no que deu, atualmente como ela não divide mais o quarto com a Tatá, temos que colocar o colchão no chão de nosso quarto, pois ela não aceita dormir sozinha, tomar banho sozinha, ficar sozinha em lugar nenhum. Pago este preço feliz pois também não tem isolamento, o que resulta em mais desenvolvimento e aprendizagem.
A comunicação espontânea está especialmente em alta, ela tem dito frases longas de forma correta sem engolir ou inverter sílabas, sem suprimir nenhuma letra, está falando mais na primeira pessoa, mas se pedimos para repetir ou pronunciar novamente alguma das palavras, ela se enrola. Engraçado isso, mas de certa forma nos revela que ela sabe falar “certo”. A conquista que ainda não veio é a fala das polissílabas e dos encontros consonantais pr, br, cr, nh, etc…
Alguns episódios que nos tem feito rir bastante
O croc´s é “O” calçado para a Milena (um pezinho 35), como anda na ponta dos pés e arrasta a frente do sapato no chão e seus outros sapatos saem do pé, arrebentam, esfolam na frente, uma coisa! Um dos seus croc´s depois de muito uso arrebentou, e eu prendi de novo a tirinha, mas outro dia ele tornou a arrebentar e eu estava com muita pressa então disse a ela para deixar, pois já estávamos indo para o carro mesmo e ela continuou caminhando e arrastando aquela tirinha. Quando estava perto do carro ela deu uma risadinha e eu estranhando perguntei o que tinha acontecido e ela me respondeu com todas as letras:
– Chegar na minha casa, vou jogar este sapato no lixo, você vai ver eu jogando ele viu?
Eu dei muita risada, pois ela estava me dizendo que não adiantava eu querer tentar mais uma vez arrumar. E neste momento pareceu muito o pai dela falando. Ele não aceita nenhum tipo de desconforto e a reação dele é mesmo de querer se livrar do que o incomoda. Além disso, ela falou toda a frase com sentido, coerência e opinião.
Ela tem tido muitos momentos assim, nos dá uma impressão de que ali está uma criança típica (que entende o mundo do mesmo jeito que gente)… É muito estranho isso. Não sei interpretar esta alternância entre perceber e fazer coisas de uma forma tão diferente, com momentos tão próximos ao dito ‘padrão de normalidade’. Isso tem me feito pensar na expressão cunhada pelos Aspies (pessoas com Síndrome de Asperger, um grau mais “funcional” do autismo): “O Autismo é um jeito de ser”.
Ontem na hora que íamos dormir ela falou para o pai dela:
– papai eu gosto taannnto da minha mamãe. E eu perguntei:- e do papai você gosta?
– silêncio
-Milena, você não gosta do papai? Ele vai viajar amanhã e você não vai dizer para ele que gosta dele, coitadinho, blá, blá, blá
Ela interrompeu minha ladainha:
-gosto mamãe, eu gosto tooodo mundo, tá bom? 🙂
É interessante demais o quanto as coisas corriqueiras para alguns, podem valer tanto para outros. Estes momentos de diálogo quase típico, esta expressão de pensamento e opinião trazem para nós um breve instante de realidade para além do Autismo. É como se a cortina abrisse uma fresta com o vento e a gente conseguisse ver uma paisagem que está ali, mas não podemos ver o tempo todo.
Olhar minha linda filha e ver que ela está se transformando é incrível, talvez porque o quanto ela realmente tem ganhado não fique claro a maior parte do tempo. O desenvolvimento de uma criança é fantástico, é um milagre que acontece a cada minuto e que na maioria das vezes nem percebemos ou pouco valorizamos.
É bom estar atenta. A jornada continua a mesma, mas o olhar se modificou e o que vejo agora é muito mais repleto de beleza e encanto.
Beijim procês!
Cliquem aqui e vejam a excelente reportagem sobre o autismo e o episódio MTV na Record.