Nós, o Autismo e as nossas conversas cotidianas

São conversas bem estranhas, posso dizer, e vão compondo o nosso dia a dia. Enquanto eu lutava para enquadrar estas conversas em uma estrutura normal eu sofria me frustrava e frustrava a minha filha, como todo o resto de suas ações. Tenho aprendido a conduzir melhorando ao invés de impor a mudança, o padrão. Somos mais felizes assim. Não é isso que de fato importa?

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Se antes meu foco era para que ela se comunicasse o mais corretamente possível para ser incluída pelos grupos típicos, hoje quero que ela se expresse. Não perco por um segundo o sentido de melhorar, aprimorar sempre, porém não excluo todo o resto do processo em favor da obtenção desta meta.

Na maioria das vezes colocamos a felicidade lá naquele ponto distante que estabelecemos como objetivo e esperamos alcançar pra desfrutar a felicidade que concebemos. Pois todos os sábios e experientes mestres que temos como referência de sabedoria nos dizem: “a felicidade é o caminho”, “felicidade é o agora”, “viva cada segundo como nunca mais”… Por isso quando temos alguém com Autismo para conviver, a mudança e a adequação não podem constituir nosso ponto de chegada, ou nosso ideal de felicidade.

Perguntas e se referindo na terceira pessoa

Para alguém com Autismo se adaptar e ser competente (é tudo o que queremos) tem que percorrer um caminho, assim como cada ser vivente. O problema é impor a forma de caminhar e querer imprimir o nosso ritmo… e como fazemos isso!

Dessa forma, meu dia com a Milena começa assim atualmente:

– bom dia mãe! (e minha vida se enche nesse momento de um sentido diferente, a partir de agora me oriento de outra forma) – Posso pegar seu cabelo? Posso bater? – Onde está sua bolsa marrom? Posso pegar a blusa do papai? (Ela finalmente conseguiu falar blusa, até agora só pronunciava “búsa”). Junto a essas perguntas estranhas ouvimos com frequência um: “dormi bem!”, “você dormiu bem?”.

Dou a ela meu carinho, meus beijos, recebo um abraço bem bom ou um pedido: “deita um pouquinho comigo” ao que eu atendo prontamente. Eu dou a ela as orientações do dia e se não dou ela pergunta: “o que tem hoje? “. Então conto que vamos levantar, tomar café, e falo toda a lista das primeiras atividades, antes tínhamos a agenda com fotos, mas há algum tempo basta apenas falar.

Um das coisas que me deixam sempre surpresa são as referências que ela faz a si mesma na terceira pessoa:

– “Você é mãe dela? (de vez em quando pergunta por que eu sou a mãe ou por que eu quis ser a mãe dela).

Ou mescla a primeira e a terceira pessoa:

– tô com fome mãe, você não vai dar comida pra sua filha?

Ou então pede: “Segura a mão da sua filha”, “penteia o cabelo da sua filha”… E conta suas conquistas assim: ela conseguiu pular? O que ela fez? Ela comeu tudo? “Acho muito difícil pra ela mãe, sua filha não consegue!

Retomando o que eu disse no início, se eu fico o tempo todo corrigindo, pedindo para repetir, dando ênfase no que está inadequado eu perco bons momentos, deixo ela irritada e frustrada. O que não significa que deixo passar batido, vou no momento certo corrigir, ensinar. Tanto é que ela já diz meu, me dá, fala comigo, eu quero, em muitos momentos, pois sempre estamos enfatizando, atualmente com mais calma, com mais clareza de que o tempo da Milena é diferente e não precisamos mais correr.

Aqui em Londres

Quanto à vida aqui em Londres, temos lidado melhor com o clima, estamos saindo bastante, passeando quase todos os dias. A imensa resistência em me aceitar como professora/terapeuta tem sido um problema, por isso estou ensinando no contexto do dia. Fiz isso a vida inteira, (olha este é maior, olhe o carro virou à esquerda, aquilo está em cima, este primeiro, alto, etc…) mas agora tem sido mais constante e consistente. Atividades diárias ajudam e quanto às letras e leitura tento fazer atividades curtas para não tirar o prazer de aprender e nem deixar que ela fique tão irritada.

Tenho desligado a internet para que ela se desapegue dos vídeos do youtube (atualmente vídeos de troca de óleo de carro e cuidados da boneca baby alive – como assim?) e sem internet ela busca os aplicativos educativos que baixamos no Ipad. Como nossa rotina está mais estruturada, mesmo cada dia sendo totalmente diferente, Milena está mais calma e doce e nós adoramos viver estes momentos na plenitude da montanha-russa*.

Um super abraço virtual a você, obrigada por estar aqui, fica em paz!

SouMaisb

*Pra quem não sabe sobre a “montanha-russa”: Argemiro Garcia, moderador da lista virtual Autismo do yahoo groups escreveu um belo texto chamado “Bem vindo à montanha-russa” onde compara o Autismo aos altos e baixos, sustos e emoções deste brinquedo.

feliz2013p

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