18 anos,  Autonomia,  Desenvolvimento atípico,  Regulação emocional

Um horizonte de autonomia a se desenhar em nosso céu

*Use fones de ouvido para escutar melhor o áudio.

Embora este texto possa ser lido em qualquer época, para contextualizar preciso dizer que foi escrito durante a pandemia. Sim, juntamos no mesmo ‘pacote’ quarentenas intermináveis, rotinas desestruturadas com suspensão, volta e de novo suspensão das aulas, a nova realidade das aulas online, além dos hormônios da adolescência e tudo isso alinhavado pelas dificuldades do quadro do Autismo. Por tudo isso foi e tem sido uma fase intensa por aqui, desafiadora para nós, mas muito mais difícil para ela, nossa linda mocinha. Ela tem sido testada diariamente e a cada momento eu agradeço o fato de termos sido tão perseverantes construindo as bases que só hoje eu enxergo. 

Foi por nunca desistir de diariamente construir conceitos, estimular habilidades, reforçar a autoestima com elogio e reconhecimento que agora estamos conseguindo enfrentar esta que tem sido para ela uma fase extremamente difícil.  

Resultado como foco: uma armadilha 

Considerando que hoje completamos quase um ano desta loucura chamada pandemia do Covid-19 e ainda estarmos convivendo em harmonia, sem atrasos e mesmo alguns ganhos, posso ter reafirmada a certeza de que não ter focado em resultados valeu a pena.  

Deixa eu me explicar melhor: quando a gente começou as intervenções e a Milena era ainda bebê, eu ficava frustrada procurando os ganhos que não vinham na velocidade que eu esperava.  

Milena nunca foi aquela autista que mudava de um mês para o outro com ganhos visíveis. Ela sempre evoluiu, sempre se desenvolveu e eu, como mostram os registros aqui mesmo no blog, sempre fui muito otimista e empolgada com cada pequeno progresso.  

Entretanto, era muito comum ver ela conseguir, por exemplo, dizer o nome das cores na terapia e não acertar no dia a dia. Generalizar, ou seja, usar o que aprendia, era algo que não acontecia quase nunca e era assim com tudo. Eu ensinava a abotoar a própria blusa todos os dias por exemplo e ela parecia nunca aprender. Talvez pelo fato do tal déficit cognitivo ou dificuldade de aprendizagem e só agora sabemos que também, pelo peso da apraxia da fala, fizeram com que os tais resultados não aparecessem tão evidentes. 

Nos textos e postagens que faço eu sempre menciono o quanto você entender aquela criança em específico é importante e é por isso que o foco no resultado é perigoso, porque significa que você espera uma resposta ou se baseia no padrão de outras crianças ou jovens.  

Você sabe por exemplo, que aos seis anos uma criança já está pronta para aprender a ler, certo? Não, não está. Pois se você espera que ao final do sétimo ano todas as crianças do mundo estejam lendo você vai se frustrar porque algumas vão ler antes e outras, mesmo sem transtorno algum vão demorar mais. 

No Autismo isso se amplifica. Você precisa considerar o indivíduo e ao pensar em resultados visíveis você tem que lembrar pelo menos que são indivíduos que não tem a motivação para o social, como nós temos. Não fazem questão nenhuma de mostrar o que sabem e muitas vezes nos surpreendem mostrando um saber que você nem desconfiava que tinham. Outras vezes, parecem não ter aprendido. Outros momentos parece até que desaprenderam e se você é aquela pessoa que investe o dinheiro que (não) tem em terapias, você vai cair na tentação de tirar seu filho de todas as intervenções porque ele ou ela não parece estar realmente aprendendo.   

O tempo e seu papel 

Esta semana em uma de nossas caminhadas diárias, Milena me propôs que eu deixasse que ela voltasse pra casa sozinha. Essa proposta surgiu espontaneamente, mas veio depois de uma conversa com a professora onde comentamos que a Lola, amiga da Mi, vai sozinha para a escola, ela tem 17 anos e tem Autismo também. 

Na escola, eles têm um treinamento que se chama Road Safe e que trabalha a independência do jovem para atravessar ruas, pegar ônibus e metrô. Milena ainda não tem maturidade para tudo isso, e até se negava a tentar, mas agora após três anos de treino ela começou a pedir para atravessar a rua e agora quer se colocar à prova para voltar para casa sozinha de pequenas distâncias. Eu supervisionei seguindo escondida e não é que ela andou várias quadras e atravessou todas as ruas direitinho? Chegando em casa ainda me mandou uma mensagem de WhatsApp avisando que tinha chegado para eu não me preocupar. Se eu tivesse me baseado no resultado de todas as colegas autistas que já fazem isso há mais de um ano eu teria desistido e hoje não teria vivido esta alegria.  

Hoje em dia ela não só abotoa a blusa, ela é quase independente em cuidados pessoais. Já separa a roupa que vai vestir, toma seu banho sozinha, dobra e guarda sua roupa, “arruma” o próprio quarto. Quando vamos sair ela coloca todas as camadas de roupa e até a luva que demorou tanto pra ela aprender finalmente ela já está conseguindo colocar sozinha.  

Mas foi preciso que eu ajustasse as minhas lentes, entende? Pois se ela seguisse vendo dia após dia a decepção no meu olhar quando ela não conseguia por mais que a gente ensinasse e treinasse, ela não teria persistido. Se ela não tivesse visto e sentido a confiança de que ela conseguiria, ela teria desistido e nós também. A dificuldade motora aqui é severa e a frustração dos erros seguidos não ajuda em nada.  

Aqueles resultados separadinhos de leitura e reconhecimento de números e quantidades, a leitura de um texto, a habilidade manual, coordenação viso-motora nunca apareceram por aqui. Se eu perguntar hoje para ela qual é direita e qual é esquerda ela vai se atrapalhar ou seja, as dificuldades básicas ainda persistem. Mas o fato de termos continuado a ensinar, mesmo quando ela não parecia aprender ou não dava as respostas, fez a base de que ela se vale hoje para seguir ganhando competências mesmo aos 18 anos.  

Se sentir competente: uma necessidade básica 

Talvez o problema maior do autista adolescente ou adulto seja preencher seu tempo com atividades que trazem satisfação. Não só para o autista, certo? Todos nós somos assim e as taxas de depressão e adoecimento pós aposentadoria confirmam que se sentir útil e competente é fundamental para uma vida com qualidade.  

Para nós que tivemos um desenvolvimento sem transtornos, o contato social, as conversas com amigos, as trocas nas redes sociais, o elogio do amigo, são para nós uma fonte de satisfação, mas não significam tanto assim para a maioria dos autistas.  

Nós nos alimentamos de pequenos prazeres que vem do convívio com outras pessoas. No Autismo, a convivência com outros é tão importante quanto, mas há uma grande maioria que chega na juventude sem um grupo de amigos, sem atividades sociais e sem um nível de independência em casa. Tudo isso traz uma sensação de inadequação muito grande. Não há fontes de prazer saudáveis e com a maturidade de percepção de mundo, é comum que as crises aumentem, pois como todas as pessoas que passam por esta fase, o adolescente autista também está buscando encontrar a própria identidade e em grande parte do tempo eles nem sabem disso.  

Ansiedade, quase uma regra na adolescência autista 

Diante de tantas demandas diante do que o corpo pede, de todas as mudanças físicas e emocionais e muitas vezes a falta de ter o que fazer, amigos pra sair, momentos de independência para se valer, a ansiedade cresce a com isso as crises podem se intensificar.  

Aconteceu aqui no começo do primeiro lockdown e o clima da casa ficou pesado pois cada vez que Milena entra em crise, ela se arrepende e isso gera um ciclo vicioso. A ansiedade sobrecarrega os sentidos, ela perde o controle, quando se organiza o arrependimento de ter gritado, jogado coisas, agido de forma impulsiva vai fazer que ela fique triste e ansiosa e tudo começa outra vez.  

Entender cada comportamento e o que ele comunica e traduzir para ela ajuda bastante. Ela começa com perguntas repetidas eu já sinalizo: você está ansiosa, vamos fazer alguma coisa juntas?  

Se ela começa a falar da futura viagem ao Brasil, faço a mesma coisa, falamos por um tempo e já aviso que planos futuros podem trazer ansiedade. Por aí vocês já perceberam o quanto eu tenho tido que estar disponível, não é? Pois sim. Isso mesmo. Tenho estado muito atenta para alimentar minha filha de atenção cada vez que ela se desregula. De qualquer forma, preciso manter os níveis de ansiedade baixos e de tanto traduzir para ela o que e porquê ela está sentindo, é comum agora ela já chegar até mim dizendo que está ansiosa por conta das aulas voltarem ou porque está com medo de tomar vacina. 

Para mim este é um dos maiores ganhos que tivemos, ela ser capaz não só de identificar a sua emoção, como comunicar com palavras e às vezes ela mesma sugere uma estratégia como a caminhada, o banho de banheira (santa Inglaterra com seus banheiros com banheira) ou até mesmo a massagem que ela me pede para fazer.  

Sequência de atividades diferentes a cada dia, nossa rotina estruturada 

Entra aí o valor da estrutura de rotina que, claro, mais uma vez, não significa repetir atividades diárias, mas programar o que vai acontecer naquele dia. Preencher o dia com atividades tira a tensão que vem de não ter o que fazer ou de não saber como vai ser o dia e ajuda no problema que enfrentamos com transições, tão comum no autismo. 

Cada vez que a Mi vai pra cozinha fazer seu lanche, ela faz uma bagunça com o ovo no fogão ou me chama a cada segundo, mas isso faz um bem tão grande para ela que a bagunça importa tão pouco. Se sentir capaz de cuidar dela mesma é o nosso maior ganho que até hoje vem com falhas, mas tem sido construído com muito incentivo.

Agora mesmo enquanto escrevo este texto ela enviou uma foto da cama que ela arrumou (porque quer sempre minha aprovação) e estava perfeita (foto abaixo). Foram no mínimo cinco anos onde eu primeiro deixava que ela finalizasse a esticada do edredom e ou a colocação dos travesseiros, aos poucos fui deixando mais e mais por conta dela, dando apoio físico, depois verbal e agora ela já consegue arrumar sozinha, embora não seja todo dia, embora não fique correto sempre, mas ainda assim os elogios a deixam leve e feliz. E não é só o elogio, mas a sensação de dar conta, que nos livra de muitas crises.  

A cama arrumada pela Mi

Vou finalizar com o cuidado de deixar algo importante registrado: não nos faça de modelos para sua realidade, não compare seu filho ou filha com a Milena ou com ninguém, apenas retire deste relato aquilo que você acha que vai ser útil e aplicável ao que você vive. O objetivo aqui é incentivar você a não desistir de ensinar, a olhar para além do aparente. Quando aos dezoito anos eu ainda não tinha resultados que eu esperava ter tido aos nove, não desistimos e não desistiremos. Fazer ajustes na rotina, oferecer atenção, ensinar todo dia sem desistir, não buscar resultados visíveis acreditando que todo ensino é válido, elogiar mais e criticar menos, são os pontos deste texto que espero poder te inspirar.  

Fico por aqui muito grata pela sua leitura e companhia. Mesmo quando uso tantas palavras para expressar o que vivenciamos. Espero de verdade poder, ainda que com uma pequena inspiração, contribuir. Receba meu carinho e até mais.  

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Quero que você saiba que não tenho a pretensão de apontar nenhum caminho nem ensinar nada. Tudo o que está escrito aqui tem a minha versão pessoal, baseada na minha própria vivência e que tem funcionado para mim e para minha filha.

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