17 anos,  Comunicação,  Reflexões

Par de sapatos


*Use fones de ouvido para escutar melhor o áudio.

Na loja, eu tentava sem sucesso despertar o interesse dela para experimentar o par de sapatos novos que ia compor o uniforme da escola para o ano que iniciava. Ela parecia estar alheia, gestos mecânicos me respondia que estava bom, independente da numeração que eu lhe calçava. Se eu pedia para que ela caminhasse, ela andava três passos e dizia de novo: “está bom” e sentava novamente. Comprei o sapato e saí da loja desapontada com ela. Sem falar abertamente, eu pensava comigo que ela podia ser mais grata, mostrar mais interesse pelo menos, colaborar me dando as respostas dizendo se estava apertado ou confortável. Mais uma vez creditei ao Autismo o resultado ruim e fomos embora.

Alguns dias mais tarde, com o site de compras aberto ela me pergunta: “como escreve sapato de cadarço?”. Sem nem dar muita atenção, ocupada que eu estava, digitei cadarço e voltei a fazer o que eu estava fazendo. Minha forma de entrar no meu mundo, só que ninguém chama isso de Autismo…

Quando o pai chegou do trabalho vi os dois conversando e mais tarde soube que ela tinha pedido a ele e compraram um par de sapatos pela internet. Achei fácil demais, pois as compras de sapato sempre foram um problema por aqui: pé alto, número que variava entre um tamanho e outro. O par de sapatos chegou e serviu perfeitamente e, a partir de então, ela nunca mais usou aqueles que eu comprei.

Hoje pela manhã enquanto ela estava calçando seus sapatos eu olhei e pensei: que estilo diferente do meu ela tem, como são diferentes os gostos, as preferências. Com toda a dificuldade de comunicar o que pensa, porque vocês sabem, às vezes a gente tem que praticamente impor o que pensamos para conseguir o que queremos, não é? Sim, pode ser quase uma luta conseguir que nossa voz seja ouvida, imagina então como não é para alguém cujo ponto central de dificuldade é comunicar, se fazer ouvir.

Minha filha não queria os sapatos que eu escolhi. Talvez porque eu ainda tenha para ela essa visão poluída pelo fato de que ela se comporta de forma infantil, algumas vezes, deixei de ver que ela cresceu e tem o seu gosto pessoal e a sua própria escolha deve prevalecer e não a minha.

Comunicações alternativas

Hoje pela manhã, após concluir tudo isso que compartilho aqui, pensei nos autistas adolescentes que não falam usando a voz e também aqueles que não conseguiram uma forma de se comunicar e senti muito por eles. As pessoas tendem a achar de alguma forma que autista não progride, não evolui, não se desenvolve.

Muitos são tratados como eternas crianças e a visão de que são anjos muitas vezes nega a eles até mesmo o direito de cometer erros humanos. Não julgo o rótulo “anjo” não, ele tem ajudado muitos pais a dar conta. Mas não posso deixar de pensar que não há nada de angelical em algumas das escolhas que a minha filha faz e que bom que ela consegue escolher e se expressar como gente, ser humano. Mesmo que eu não a chame de anjo, sei que ela é, sim, filha de Deus, como eu como você, que ela é querida, amada e dona do direito de escolher seus próprios sapatos.

Se você tem um filho que não usa a fala para se comunicar, por favor invista toda a sua energia em criar um canal de comunicação para que ele consiga se expressar. O fato dele ou dela ser autista não impede que ele se torne adulto e vocês vão precisar chegar em uma acordo para que ele ou ela seja respeitado em suas escolhas e aprenda a respeitar as escolhas do outro.

Por último, este texto não aponta dedos nem se direciona a condenar ninguém. Muitas famílias não conseguem estabelecer uma comunicação alternativa. Não é falta de vontade, nem de tentativa. É preciso ajuda e a ajuda, infelizmente, é bem escassa. Precisamos nos conscientizar enquanto sociedade, formar profissionais e, acima de tudo, acolher mais. Sem julgar tanto.

Como sempre, termino lançando o meu desejo de que um dia eu não consiga reconhecer os autistas de longe pelas roupas que usam e os sapatos que calçam. Que todos nós possamos ser capazes e sermos entendidos no nosso direito a ter identidade.

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Quero que você saiba que não tenho a pretensão de apontar nenhum caminho nem ensinar nada. Tudo o que está escrito aqui tem a minha versão pessoal, baseada na minha própria vivência e que tem funcionado para mim e para minha filha.

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