Sobre essa fase chamada adolescência


*Use fones de ouvido para escutar melhor o áudio.

Uma coisa é certa: todos nós construímos nossa personalidade ao longo de fases do nosso desenvolvimento. Etapas muito claras da vida humana que trazem os aprendizados que tornam possíveis outras conquistas, outras lições ainda mais complexas. Vamos refinando, especializando e ampliando o que sabemos para saber cada vez mais.

É desta forma que a adolescência, para qualquer pessoa, será resultado das bases adquiridas em toda a infância, bombardeada por uma carga absurda de hormônios que colocam de certa forma à prova todas aquelas habilidades aprendidas e exigem um crescimento ou maturidade quase súbita para lidar com demandas muito novas, mas nada básicas, pelo contrário, exigências muito complexas de um mundo nada previsível.

Seu corpo, que você até pouco tempo nem notava direito, te chama a atenção. Seus sentidos pedem estímulos e agora que você finalmente se dá conta. O corpo muda, mas não só o corpo, você se pega prestando atenção em aspectos das relações humanas que você nunca tinha percebido. Tudo é muito, tudo é intenso e quando esse turbilhão te agita internamente, ninguém parece se importar, ninguém valida sua confusão diante de tanta novidade e a vontade de gritar ou se isolar se agiganta.

Todos nós que já passamos por esta fase rica, intensa, cheia de vida e vigor, sabemos que é bem assim.

Quando o desenvolvimento é desarmônico

O Autismo é um transtorno do desenvolvimento, quantas centenas de vezes falamos disso aqui no blog? Por mais que este conceito esteja claro em teoria, na prática significa que o curso natural de aquisição de habilidades foi transtornado, não seguiu a sequência esperada, foi desregular. Típico em algumas áreas, demais ou de menos em outras.

Vamos desenhar?

Exemplos retirados da escala de 16 níveis de desenvolvimento:

Legenda:

  • IS: Interação Social: Ele ou ela sabe como solicitar o adulto (por gesto ou verbalmente) para participar ou seguir em um jogo de salão com ou sem um objeto
  • RC: Regulação do comportamento: Ele responde a uma ordem simples
  • AC: Atenção Conjunta: Quando um adulto aponta para um objeto, ele olha diretamente para o objeto indicado
  • LE: Linguagem Expressiva: Ele pode comentar sobre suas próprias ações
  • LC: Linguagem Compreensiva: Ele entende frases de duas palavras familiares no contexto
  • IV: Imitação Vocal: Você pode imitar ruídos familiares (motor de carro, buzina, máquinas etc)
  • IG: Imitação Gestual Ele pode imediatamente imitar um gesto que ele sabe
  • RA: Relação Afetiva: Ele reconhece e diferencia seus pais
  • EE: Expressão Emocional: Ele sorri com a aparência de um objeto que ele quer
  • AI: Auto Imagem:Ele pode nomear e indicar as partes do seu rosto
  • BS: Brincar Simbólico: Brincar usando a imaginação, com objetos não relacionados, como fazer de conta que um bloco é um carro
  • RO: Relação com Objeto: Esquema de relação de objetos: Ele manipula objetos de forma exploratória (virando, balançando, arranhando, batendo etc.)
  • OC: Operação Causal: Quando um brinquedo mecânico pára de funcionar, a criança olha impaciente
  • MF: Meio-Fim: Ele usa a alça de um brinquedo para puxar um pano
  • RE: Relação Espacial: Ele pode adaptar objetos de diferentes formas uns aos outros
  • OP: Objeto Permanência: Um objeto escondido sob uma caixa é movido em vista do filho e oculto sob outra caixa, a criança imediatamente encontra o objeto sob a segunda caixa

É mais ou menos assim, você tem áreas de desenvolvimento. Por exemplo, o gráfico em forma de teia acima mostra que o desenvolvimento em uma área impacta outras e fazem um movimento mais ou menos harmônico. A linguagem desenvolve e logo vai afetar a área da interação social, da regulação emocional e assim por diante.

Mas nas pessoas com Autismo isso é diferente. Uma área se desenvolve enquanto outra fica lá atrás. A criança pode saber tudo sobre tecnologia e ser quase um gênio lidando com aplicativos de internet e não saber desabotoar uma roupa.

Pois bem, quando este desenvolvimento acontece de forma tão desarmônica, isso significa que algumas áreas vão demandar uma habilidade que outra área ainda não adquiriu. Por exemplo, uma criança sabe tudo sobre letras e alfabeto e fez algo que é comum no Autismo, chamado hiperlexia, que é a aprendizagem da leitura precocemente e sem que ninguém ensinasse. Essa criança começa então a ler sozinha por volta de quatro anos, porém por mais que ela leia um livro, não consegue entender o que lê. Ou então, entende o texto, mas não capta as nuances na relação dos personagens. É como se ela lesse todos os livros de boas maneiras de uma estante, mas arrotasse na mesa de jantar. Ou entendesse tudo sobre mecânica de carro, mas se você mostra uma chave de fenda ela não sabe dizer o que é.

Rapidamente outro exemplo: o homem que inspirou o mais conhecido personagem autista no filme Rain Man, (Kim Peek) sabia de cor 12.000 livros, tinha uma habilidade incrível com números, mas precisava de ajuda para amarrar os próprios sapatos. É como se você visse alguém que você julga super inteligente pedindo ajuda para fazer algo muito básico como dobrar um lençol.

Adolescência e Autismo

Dito isso, vamos somar os dois cenários: adolescência e Autismo. Teremos um monte de hormônios intensificando emoções e percepções; um corpo modificando literalmente a olhos vistos; um novo mundo surgindo que você antes nem reparava e mais, as áreas que dariam suporte a esta fase estão imaturas, te ancorando na infância e não te dando bases para crescer.

Este é o cenário da nossa vida por aqui neste último ano, mais especificamente. Temos emoções desreguladas, impulsos inesperados incorporados na doce menina que nos pede ajuda para coisas básicas. Ela afirma dar conta de tudo e não quer mais ajuda (que bom), mas teima em ser ingênua a ponto de tentar conversar com estranhos na rua.

Nunca fez tanto sentido as horas de terapia em que eu me questionava se estava valendo a pena. Hoje eu uso tudo o que acumulamos nestes anos. Lembro de uma das primeiras terapias comportamentais e a frase: “esta atividade acabou” que ensinava Milena sobre transições, uma área tão delicada no Autismo. Hoje em dia, quando a adolescente exala rebeldia, pois precisa se afirmar como pessoa, gritando para os adultos sua própria opinião, eu digo a ela que é hora do banho e ao ver crescer o mal humor e sabendo que vai caminhar para uma crise de nervos, eu digo a ela: “Por enquanto, esta atividade acabou. Agora é do banho”. Assim, ela acessa muito mais facilmente a habilidade de finalizar o que está fazendo.

Conquistas em meio ao turbilhão

Mais uma vez, a escola tem sido mais do que uma parceira, a escola tem construído bases. Eu nunca pensei que alguém externamente iria me ensinar a ver na minha filha o potencial dela. Eu sempre me julguei uma mãe otimista, porém, eles sabem ver o que eu não vejo e por isso ela tem crescido tanto. Agora está cozinhando, segue sozinha uma receita e, sem ajuda, faz coisas simples para comermos. Claro que faz bagunça, claro que nem sempre está disposta, mas ela faz. Uma menina com Autismo moderado e uma dificuldade imensa em aprender, com uma dificuldade motora enorme, tem sido capaz de cozinhar.

E também de falar inglês, jogar do jeito dela basquete e vôlei, vender bolos na banca da escola na feira do bairro, acampar por uma semana com professores e colegas – tendo em vista que em casa não fica sozinha nem na sala, se não tiver alguém com ela…

Tem sido um tempo rico e maluco. As demandas da Milena são as minhas demandas também. Me vejo no mesmo turbilhão de emoções e hormônios que fazem o ciclo contrário na outra curva da vida da mulher. A idade bate seu carimbo: menopausa e aprender nunca foi tão difícil, mas eu não desisto e nem me acovardo. Sigo neste processo de cimentar as bases dela e reforçar as minhas.

O grande objetivo destes textos, ao longo destes anos de blog (em fevereiro completamos 13 anos), é justamente compartilhar com todos que convivem com um autista as nossas aprendizagens para que de alguma forma as pessoas possam se preparar para o que está por vir, mas também saibam como é rico este caminho. Não deixe ninguém te roubar o direito de ver a beleza desta jornada ou ela pode até perder o sentido. Há muita luta por aqui, mas há um intenso aprender e crescer… E ver cada fase passar deixando um misto de saudade, alegria e alívio.

Que seu caminhar seja pleno e que o lado menos bonito e difícil não vença o seu poder de acreditar, amar e seguir.

 

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Silvana
Silvana
5 anos atrás

Lindo o texto!!!!Como tudo que você escreve é maravilhoso(lindo e útil). Mas confesso que nos últimos seis meses tenho “enlouquecido” com meu filho Enzo . Ele fará dezesseis anos em março. Está no auge da adolescência.Ele já tinha um comportamento muito difícil e agora , nessa fase, todas as dificuldades multiplicaram. Muito obrigada por compartilhar informações sobre autismo, aliados ao desenvolvimento e desafios da Milena .Seus textos sempre me ajudaram muito. Achei lindo a Milena cozinhando!!!!Que o Criador derrame infinitas bênçãos sobre vocês!!!!

rosilane
rosilane
5 anos atrás

MARAVILHOSO E ENRIQUECEDOR!

Ana Dib
Ana Dib
4 anos atrás

Tenho um filho de 12 anos. Uma fase muito difícil. Se eu e meu marido negamos alguma coisa fala tudo que é palavrão, chora, resmunga e fala mais palavrão. Aqui em casa ninguém fala assim. Chego do trabalho para almoçar em casa e é tanto estresse, que, às vezes, como na rua. Não sei o que fazer.

Fabiana Garcia Pereira
Fabiana Garcia Pereira
4 anos atrás

Esse material é muito rico. Demais. Quanta informação para quem inicia nessa caminhada e para quem já está nela se nortear. Cris, isso é imensamente gratificante. Obrigada por dividir sempre. A adolescência é uma fase de muitos desafios e essa pureza de olhar que elas tem (incluo minha filha Mariana) nos fazem ver a vida de outra forma. Intensas e incríveis e que por detrás de toda essa carga da adolescência, tentam se superar a todo instante. Obrigada por compartilhar sempre.