Céu com nuvens cinzas.

Quando você adoece, meu mundo perde a cor


*Use fones de ouvido para escutar o áudio melhor.

Junho foi um mês que me trouxe susto, angústia e aprendizagens vindas da dor.

Ainda no início do mês em uma manhã comum, Milena acordou enjoada e eu pensei que ela tinha comido algo errado no dia anterior. Ela foi para a escola, mas passou mal na van e vomitou assim que chegou na escola. Me ligaram dizendo o que tinha acontecido e à tarde ela chegou em casa com carinha de doente.

Vou resumir bastante para vocês: o que a princípio parecia uma virose acabou se arrastando por quase três semanas e ainda não sabemos exatamente o que ela tem. Ontem foi o primeiro dia sem vômitos. Mas teve dias em que ela não parava de ter ânsias nem por meia hora. Ela emagreceu três quilos, ela se desesperou, eu mais ainda e nem sei dizer em palavras o tamanho do meu alívio ao vê-la melhorando. Mas preciso reconhecer o quanto eu a preparei mal para situações assim.

A criança aprende observando o mundo, olhando as pessoas agirem. Aprende na escola, na televisão, na internet, no livro, pela imitação. A entrada de informação é constante e qualquer pequeno gesto ensina. O olhar absorve tudo o tempo todo e o desenvolvimento segue seu curso. Toda criança reforça e solidifica o que aprendeu quando brinca, quando interage, quando faz de conta.

Mas para a maioria das pessoas que tem Autismo não é assim. É preciso mostrar, apontar a vida em volta, fazer teatro para exemplificar. Depois de muito repetir ela assimila e, ainda assim, para usar o que apreendeu vai precisar de ajuda também, dar significado ao conceito, generalizar. Ao exercitar, finalmente, consegue aprender e, assim, conquista mais autonomia. Mas até chegar neste ponto temos um processo longo que exige estrutura e dedicação.

Consultas no médico e hospital

Primeiramente, a Milena sentenciou que não queria ir ao médico. Para a primeira consulta ela saiu de casa quase arrastada, fez uma cena na recepção da clínica, chorou o tempo todo de espera e só deixou que tocassem a barriga dela – isso depois de combinarmos que ela guiaria a mão da médica e o papai contaria até dez (em português, como ela exigiu). Sem diagnóstico, voltamos para casa com um soro oral que eu já estava dando a ela, ou seja, não adiantou.

Como ela piorou, foi necessário ir ao hospital. Esperamos na ala infantil em uma sala de espera lindamente preparada para crianças (mesmo sendo um hospital público). Ainda assim, ela não quis olhar para nada, brincar com nada… Ficou inquieta, angustiada e se encaminhou quase agachada quando a médica chamou pelo seu nome. É que ela não queria olhar para as outras crianças que estavam lá, mesmo as que estavam bem, ela simplesmente não queria entrar em contato com aquele ambiente.

Ela foi respeitada em seu pânico, por isso só fez exame de urina, já que qualquer outro exame seria impossível e traumático. Estava sem febre, o único sintoma era o vômito constante. Por isso, apenas pediram um exame de urina, que para colher exigiu um “caminhão” de paciência e as mais inusitadas estratégias que você nem pode imaginar.

Se recuperando aos pouquinhos

Milena foi medicada e, muito aos poucos, foi melhorando. Suas professoras ligavam todos os dias e até se ofereceram para a acompanhar nos exames, caso fosse necessário. Ela foi para a escola nos dias que conseguia, mesmo que por um tempo menor, pois ela queria muito ir e ficava muito mais alterada e nervosa quando não conseguia seguir com sua rotina.

Agora está com medo de ir com o transporte escolar, pois acha que foi lá que tudo começou. Por isso, semana passada eu a levei de metrô, mas para voltar ela preferiu vir na van com as amigas. Afinal, ela passou mal na ida para a escola, para voltar não tem problema algum… Além do enjoo matinal, dá pra ver o peso que o emocional tem no comportamento. É um fator de peso a somar na complexidade do quadro.

Imagina se ela não falasse? Provavelmente estaria sendo medicada de forma errada, pois ela fica nervosa, impulsiva, desconta em mim e no pai. É rude e impaciente, ou seja, uma garotinha muito diferente de quem ela é de verdade. Quantas pessoas com Autismo não passam por crises assim, sem conseguir dizer o que sentem?

De toda essa experiência que contada aqui parece não ter sido nada, mas nos custou muitas lágrimas e angústias, ficaram algumas lições que quero dividir com vocês:

Representação mental / Esquema corporal

É na brincadeira, exercitando a imaginação diariamente, que a criança aprende a construir uma imagem mental que representa o real.

Estimulamos muito essa imaginação assim que a Milena começou as terapias, ainda quando bebê. Mesmo com todo o estímulo nas várias terapias, o uso deste símbolo é deficitário. A gente nota isso quando estamos executando tarefas simples como lavar ou prender os cabelos.

As pessoas quando estão prendendo seu próprio cabelo fazem uma imagem sem perceber para conseguirem se orientar sem ver. Se você fechar os olhos ainda consegue tocar a ponta do nariz ou o seu cotovelo porque segue o esquema corporal que está registrado em sua memória. Você se guia pelo sentido e pela imagem, por isso a imaginação é tão importante. Se fizermos um exercício simples como colocar um adesivo nas costas da Mi, às vezes, ela não sente que colocamos. E se pedimos para ela retirar o adesivo ela não consegue.

Com as terapias e os estímulos em casa essa percepção aumentou muito, mas ainda deixa a desejar quando a situação exige, principalmente se tem um estresse para piorar as coisas.

Poderia escrever vários posts com mais exemplos, mas aqui só quero explicar porque foi tão difícil para a Milena explicar onde estava doendo. Cada hora ela colocava a mão em um lugar diferente deixando todos nós muito preocupados. Não ter uma consciência corporal significa não reconhecer seu corpo ou as partes do corpo. Por isso, muitos autistas dizem que dói o corpo inteiro quando machucam apenas o dedo. Eles têm dificuldade de seguir este esquema corporal mentalmente.

Falta de modelos

A Milena não gosta de ser tocada, mesmo sendo tão carinhosa. Ela pede abraços o tempo inteiro ou pede o famoso: “me másga” (me esmaga, me aperta), mas é muito evidente que a iniciativa do carinho tem que partir dela.

Como ela é muito saudável e nunca fica doente, e nós também na família não vamos ao médico, ela não tem muitos modelos para copiar sobre situações de hospital. Dos exames que um médico faz como tocar, apertar a barriga, sentir o corpo do paciente, ela só tinha as memórias de quando era bem pequena. E essas memórias devem estar contaminadas do pânico de quem, na época, não era compreendida na sua aversão pelo toque.

Milena é muito sensível para a dor do outro e pouco sensível para a dor dela. Isso significa que é comum descobrimos um machucado na Mi sem que ela tenha falado nada a respeito. Às vezes, ela tropeça ou sofre um arranhão que sabemos que doeu, mas ela não reclama.

Se alguém se machuca perto dela a reação é muito intensa e até exagerada. Quando sabe que alguém está doente o comportamento dela vai se alterar. Às vezes, uma crise com choro e nervosismo acontece mais tarde e já sabemos que foi pelo que ela presenciou ou porque ficou sabendo que alguém que ela gosta está doente. Se vê uma criança chorando ela altera seu comportamento na hora. Precisamos dizer a ela que a criança está bem e está chorando apenas porque quer brincar mais. Do contrário, Mi coloca as mãos nos ouvidos, fecha os olhos e sai de perto abalada.

Toda situação desafiadora que enfrento com ela preciso dar modelos. Preciso mostrar para ela que acontece com todo mundo e como é a reação das pessoas. Precisei modelar nossas despedidas, por exemplo. Mostrar à ela que saudade é algo que todo mundo sente e que quando alguém diz que está com saudades não significa que ela está sendo responsável por fazer alguém sofrer. Só quando surpreendi ela chorando sozinha e ela conseguiu me explicar dizendo que era “culpa dela que a vovó estava triste” foi que eu entendi que lidar com a saudade era um modelo que, ainda, não existia.

O mundo é complexo, minha gente. Somos orientados por um conhecimento social, identificamos nuances de comportamentos, deciframos códigos em olhares. Uma mulher entra na sala com uma micro-saia, você apenas olha para sua amiga ao lado e ela entende tudo o que você não disse. Um olhar da sua mãe quando você tinha apenas oito anos era suficiente para você saber que ela estava brava por algo que você tinha aprontado.

Sem as percepções destes códigos, o mundo vira um programa de computador. Ou seja, um monte de linhas de comando que para um leigo não significam nada.

Por isso, em um passeio na pracinha eu preciso apontar e dizer: “Olha, aquela criança está brincando com areia, ela gosta de colocar as mãos na areia. Olha ela está chamando o menino para brincar com ela. Olha aquela outra criança está brava com seu cachorro porque ele pegou seu brinquedo. Olha aquela mulher ali com o bebê, não é a mamãe dele, não, aposto que a mamãe dele foi trabalhar e agora ele tem que ficar com a vovó! Olha o avião no céu, lá dentro tem gente viajando. Olha o carro buzinando, ele faz isso para o moço da bicicleta saber que ele vai passar”. Dez minutos de pracinha, um mundo de aprendizagens que a criança que não tem Autismo capta sem nenhuma ajuda.

Pois bem, me faltou apontar no mundo as situações de doença e de recuperação, consultas médicas e internações, crianças doentes, seringas e agulhas. Os únicos modelos que a Milena tinha eram os que ela viveu. Quantos traumas em tantos exames, avaliações e idas ao médico? Quantas vezes ela foi tocada, quantos medos ela não expressou, quantas pessoas preocupadas e crianças chorando ela não guardou em seu arquivo interno sem que os significados disso fossem traduzidos?

Não me sinto culpada por essas lacunas, não acho que deveria. Apenas identifico que a gente nunca vai dar conta de tudo, vamos falhar muitas vezes e temos que aceitar que isso não é ruim. A Milena tem que aprender por outras vias que não seja eu, ela pode aprender, ela consegue. Apenas é um pouco diferente, ela sofre um pouco mais quando, sozinha, tem que construir seus significados. Preciso entender que é assim.

Não são todos, mas muitos autistas não conseguem fazer estas leituras, eles se sobrecarregam por faltar elementos para ler o mundo. Não são poucos que vão nos dizer que preferem a solidão por não conseguirem lidar com os códigos sociais. Muitas pessoas tímidas ou introspectivas também vão detestar festas e eventos sociais, justamente por que não gostam de lidar com o: “querida você está linda neste vestido” e no segundo seguinte ouvir a mesma pessoa cochichar: “ela está horrível naquele vestido”.

Junte a isso todo os estímulos que vem dos barulhos, das luzes, dos toques, dos cheiros e do inesperado das situações e você vai ter uma ideia vaga do que seu filho, ou aluno, ou paciente com Autismo enfrenta 24 horas por dia.

Que chegue a cura!

O alívio de ver Milena se recuperando é indescritível. Foi muito ruim quando ouvi ela dizer que a culpa era dela por estar doente (imagina?!). Segurei as lágrimas quando eu cheguei no banheiro e a ouvi conversando sozinha: “Papai do céu ajuda a Milena”. Engasguei quando ela me perguntava o que estava acontecendo com ela ou quando queria saber o porquê da gente tem que sentir tanta dor. No dia em que o remédio fez efeito e ela se iluminou voltando a ser a menina doce que sempre foi eu fiquei tão leve que pensei que podia voar. Quanta gratidão!

Ela ainda tem que fazer mais exames, ainda sente enjoo várias vezes por dia. Ou seja, ainda não passou, mas vai passar, eu sei que vai.

Agora, vamos juntas nos preparar para os momentos onde a dor nos visitar. Isso não vai fazer tudo ficar mais fácil, mas pelo menos vai fazer ficar menos desconhecido e eu sei que poder prever ou ter uma ideia antecipada das coisas ajuda muito.

Estou aqui do seu lado

Filha, a mamãe não sabe bem como ajudar quando você fica doente… Talvez porque quando seu corpo adoece, a alma da mamãe adoece junto. O medo de perder você, o medo de te ver sofrer é tão grande que faz a sua mãe ficar mais fraca e talvez não conseguir te ajudar como você gostaria.

Mas sabe, filha, a mamãe está aqui do seu lado. Já te disse isso muitas vezes e vou continuar repetindo: estamos juntas e eu vou seguir te ajudando. Mas também vou me esforçar ainda mais para que você não precise de tanta ajuda e entenda melhor os desafios que a doença traz, que a vida traz. Sua família está aqui te entendendo e te respeitando. Você é forte, você é capaz, você consegue e quando você não conseguir vai encontrar apoio, vai me encontrar aqui do seu lado te dizendo sempre: “você não está sozinha”.

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Haydée
Haydée
6 anos atrás

Que texto sensível, amiga! Como você! Milena vai se recuperar, claro, e vocês vão superar essa fase traumática, com uma bagagem a mais de conhecimento de vida e de auto-conheciento. Viver, em certo sentido, é estar aberta a novas experiências, boas e más, não é? Coragem aí, e um beijinho nessa fofa da Mi, se ela quiser, oficorse!!

Antonio Carlos Silva Wanderley
Antonio Carlos Silva Wanderley
6 anos atrás

Fausta Cristina,
Bom dia!
Sou leitor e também ouvinte das experiências relatadas no “MundodaMi”, o que tem me ajudado muito no acompanhamento do meu querido Pedro Paulo. Solidarizo-me com você neste momento, e peço a Deus que ela melhore completamente.

Antonio Wanderley

Ânara
Ânara
6 anos atrás

Oi Cris!Nossa que relato comovente! Quando nossos filhos adoecem, parece que paramos de respirar. Fico muito feliz em saber que a Milena está melhor! Aqui também tenho visto muitos progressos e o garotinho que não brincava de nada, tem brincado muito, imaginando e encenando situações (agora está num momento toy story e brinca com o Buzz e o Woody). E eu, me pego admirada olhando ele brincar como qualquer outra criança!

VANIA REIS LANGARO
VANIA REIS LANGARO
6 anos atrás

Cris! Que presente poder “ler” seus textos através de sua doce voz!! Amo, amo e amo!!! Que Deus esteja com vocês sempre, e pela sua infinita bondade, cure a Milena para que essa fase seja o mais breve possível, só uma lembranca e um aprendizado. Um beijo minha amiga querida!!

Mariana
Mariana
6 anos atrás

Texto perfeito Fausta. Obrigada por compartilhar seu conhecimento.
Muita gratidão !

Fatima
Fatima
6 anos atrás

Sigo te admirando sempre!! Que missão linda a sua, chego a me emocionar, pois suas palavras traduzem com imensa clareza o seu amor por seus filhos!! Deus abençoe vcs sempre!!

Maria Célia
Maria Célia
6 anos atrás

Que lindo amiga!!! Cada dia mais sua fã!!! Que Deus abençoe vcs e que a Milena se recupere logo!!! Bjo querida!!

Andreia Greco
Andreia Greco
6 anos atrás

Chorando baldes com esse post Cris. Consigo entender exatamente e em toda a sua profundidade o seu sentimento numa situação dessas. Já lhe disse em outros momentos o quanto as suas descrições sobre a Milena me remetem a Piettra. Desejo do fundo do meu coração que ela se recupere logo e que vc tbm se recupere minha querida. Nós adoecemos junto com elas, é um adoecimento diferente, mas que tbm nos tira do eixo. Estarei vibrando por vcs duas. Um beijo grande.❤

Alessandra santos
Alessandra santos
6 anos atrás

Faustina, que Deus em sua infinita bondade, continue a te abençoar com tanto amor e carinho para a Milena, que Ele lhe dê sabedoria para enfrentar os momentos que muitas vezes, são tão difíceis.

Janete Pereira
Janete Pereira
6 anos atrás

Minha filha tem essas crises de vomitos desde pequena. Dura uns 2 dias, ela perde peso, emagrece depois aos poucos vai melhorando. Mas alguns meses depois acontece de novo.Já fizemos vários exames mas até agora nada, talvez só ansiedade mesmo, mas é horrível, são momentos muito difíceis.
Você já descobriu a causa?

Sandra
Sandra
5 anos atrás

Não tem uma postagem que não me faça chorar de emoção. Obrigada por compartilhar suas vivências.