Das coisas que ancoram e das coisas que libertam


*Use fones para melhor escutar o áudio.

Preciso confessar a vocês que essa coisa de maturidade é barra… Rugas a mais, ânimo a menos, decidir se pinta não os cabelos… Mas nada disso se compara ao prazer de poder contar com a nossa própria experiência; viver a liberdade de escolher o seu próprio caminho e precisar cada dia menos da aprovação alheia.

E assim, se antes impressionava a frase de efeito, hoje ela é lida com a cautela que separa a beleza da palavra de sua real aplicabilidade. Se a moda te ditava, hoje ela apenas aconselha. A pressa para conquistar logo o tal sucesso, vira vontade de aprender a apreciar a caminhada e diminuir o ritmo.

Dentre estas e tantas outras levezas que chegam com o tempo, ter você mesma como seu guia é libertador.

Assim, após anos lendo, vivendo e aprendendo com o autismo, vejo que embora as pessoas com autismo não caibam dentro de uma forma, parece que ninguém presta atenção a isso. Ou pelo menos quase ninguém parece respeitar isso de fato, na prática.

Recebo gente com a bandeira da inclusão/aceitação em punho, querendo ditar o que eu devo ou não fazer com minha filha, o que eu preciso ensinar, o que eu devo aceitar. Me desculpem os ‘bem-intencionados’, mas aqui o que vale é ver a minha filha feliz. O seu julgamento é um presente que não aceito, então segure ele (e o peso dele) você mesmo.

Há muitos anos atrás, li e ouvi que eu devia corrigir as estereotipias da Milena. Que ela seria melhor aceita e incluída sem os movimentos de auto regulação. Eu tentei, pois realmente acreditei que devia “educar” ela, para ser “melhor aceita”. Mas não tive sucesso, ela seguia agitando as mãozinhas e esticando a perna, cada vez que estava feliz demais, ansiosa demais ou estimulada demais. E eu que acreditei nos argumentos de que isso era para o bem dela e tentava chamar a atenção dela. Porém, foi ela quem me mostrou que não era bem assim. Que bom que eu entendi.

Ainda lá atrás, no início desta minha jornada, li um texto escrito por um autista que dizia o bem que fazia para ele os seus stims, ou seja, seus movimentos estereotipados. Repensei tudo e parei de corrigir.

Stims ou estereotipias são movimentos que não são executados para uma ação específica, como: pegar, puxar, soltar. Mas ainda assim eles têm uma função, servem para regular os sentidos desequilibrados. Todos nós fazemos nossas estereotipias. Como balançar a perna; enrolar uma mecha de cabelo com a ponta dos dedos; mascar chiclete; roer unhas; estalar os dedos; tamborilar os dedos; morder a boca dentre muitos outros. Eu sempre uso o exemplo do dentista: você anestesia a boca para tratar um dente. Enquanto a anestesia dura, toda hora a gente leva a mão na face sem nem perceber porque a gente atende à ordem do nosso cérebro: “ei não estou sentindo a bochecha, toca lá para ver se ela ainda existe”. E você quase involuntariamente leva a mão na bochecha a cada minuto de forma impulsiva sem nem perceber.

A sensação de anestesia é real no autismo e ela é resultado do desequilíbrio hormonal que o estresse desencadeia. A função da estereotipia, segundo a grande maioria das pessoas com autismo que conseguem explicar, é aliviar essa sobrecarga. Como quando você está muito cansado e espreguiça, ou toma um banho. Não resolve o seu cansaço, mas te traz uma sensação de reconforto imensa.

Função da estereotipia compreendida, mas aí vem a norma outra vez, ditando suas regras absolutas. Se antes era errado aceitar, agora é errado não aceitar. “Que absurdo a mãe que não aceita, que horror querer corrigir um stim”.

E na discussão a gente perde o mais importante: o que a pessoa com autismo deseja? Para o autista verbal você consegue até perguntar ou consegue encontrar melhor esta resposta. Mas para quem não fala você precisa investigar e decidir por você o que fazer com as estereotipias.

A meu ver, cada caso é um caso e cada criança vai te conduzir a uma busca de estratégia diferente. Conter o que prejudica; separar o que é mania do que é auto regulação; e dar muita, mas muita atividade prazerosa e oportunidade de ser útil a essa criança, jovem ou adulto.

Pois é… ninguém disse que seria fácil, mas sempre lembramos que é possível.

A nos ancorar

Muitas e muitas vezes eu tentei fazer com que minha outra filha, que teve desenvolvimento típico, aceitasse seus cachos e parasse de perder tempo com escovas e chapinhas. Mas ela era feliz alisando os cabelos e eu aceitei isso. Até que um dia ela achou por bem assumir seus cachos e agora ela é feliz com eles.

A Milena por muitas e muitas vezes me disse que não queria ser autista. Me disse mais de uma vez que queria ficar como as amigas; chorou no meu ombro as festas de aniversário que não foi convidada; e as festas de pijama que ela ficava sonhando e que nunca vieram. Nossas conversas sempre foram francas e abertas e eu nunca considerei que ela não estava me entendendo. Falo o que falaria se ela não tivesse autismo.

O que eu digo a ela é o que eu acredito: as meninas gostam de você, mas elas não sabem lidar com você porque você é diferente. E mais de uma vez eu ouvi: “você me ajuda a ser igual?” Eu sempre respondo: “não posso te ajudar com isso, porque só você é Milena e ser Milena é tão maravilhoso. Mas eu posso te ajudar a não ficar triste com isso”.

E foi também através de diálogos assim que ela via as suas estereotipias em filmagens e me questionava. Até que um dia ela me pediu para eu ajudar ela a parar, para segurar ela. Eu respondi que eu não faria isso, mas que eu iria apenas avisar a ela quando ela estivesse fazendo os tais stims.

Assim fiz por um tempo. Sempre que ela começava, geralmente com ouras crianças por perto eu chegava e dizia baixinho: “você está fazendo estereotipia” e ela parava. Eu me entristecia, mas por mais que eu quisesse que ela se aceitasse, esse era o processo DELA, o direito de querer ser igual era dela e a mim cabia respeitar. E eu respeitava, mas continuava dando suporte para que ela aceitasse a sua diferença, mostrando a ela as diferenças que existe no mundo.

A nos libertar

Hoje Milena tem 14 anos e faz estereotipia a todo momento, quando quiser e se quiser. Ela se libertou dessa forma e eu fiquei muito grata por isso. Recentemente perguntei de novo: “quer que eu te avise?”. E amei ouvir: “não precisa mãe, eu sei”. Quase comemorei.

Ela tem estereotipia de fala, que nos cansa imensamente, pois repete uma pergunta ou diálogo vezes e vezes e também faz seus movimentos estranhos com o corpo. Ela estica as pernas, mexe as mãos e a boca. Todo mundo olha e eu sorrio.

O que mudou para ela se aceitar? Em primeiro lugar maturidade, adicionado a isso a escola. Ela está em uma escola formal, mas dentro de uma unidade especial com mais cinco garotas da idade dela, todas com autismo e graus de autismo próximos.

Ela hoje se aceita muito mais, pois ela tem uma referência, ela não é mais a única e para ela, Milena, se sentir igual é importante. Não foi algo que eu dei, não foi o que eu ensinei, não é de longe o que eu quero, mas se ela quer ser “igual” o que me cabe é respeitar. Minha filha é diferente de mim, ela ama se maquiar, eu não, ela adora perfume, roupa da moda, coisas brilhantes e coloridas, eu sou do básico e do marrom. Foi complicado pra mim ver ela se revoltar contra o autismo, mas ainda mais uma vez: eu preciso entender e aceitar ou estarei indo contra o meu próprio discurso de aceitação.

Minha liberdade ou a dela

Até que ponto eu determino o que é bom para uma outra pessoa? Quem é você, a família, o doutor, o terapeuta para mudar o que faz seu filho feliz? Eu precisei de muito esforço para não ouvir meus desejos ao invés dos dela, para não projetar a minha vontade ou a minha vergonha e dizer que estava fazendo algo por ela quando na verdade eu estaria fazendo por mim mesma.

O esforço é imenso, mas compreender minha filha é colocar o amor em ação e aprender a ouvir o que ela diz sem palavras, o que ela comunica apenas com o comportamento. Te garanto que é um imenso desafio, mas que vale cada gota de suor.

Então se ela diz: “quero fazer estereotipia”, que faça, mas se ela disser: “me ajuda a não fazer” por mais que eu não concorde, eu tenho que ajudar também.

Enjoei de ver gente nos extremos, inclusão escolar é o único caminho, ABA é o único caminho, DAN é o único caminho, estereotipia sim, estereotipia não. Ah para!!!

Por isso empodere-se para conduzir o seu próprio caminho. A responsabilidade sobre sua criança é sua. Não deixe ninguém determinar as suas escolhas por mais lindo que o texto seja, por mais convincente que seja a fala. No final das contas é entre você e seu filho e a consequência da escolha é sua e isso ninguém vai mudar.

Eu fiquei perdida por muito tempo agindo conforme me diziam e perdendo tempo e energia em caminhos de frustração. Eu realmente me libertei quando foquei no que me faz bem, no que faz bem à minha filha. Não é fácil, mas é melhor assistir de camarote e adotar o que faz sentido para nós com calma e sensatez do que entrar e sair de moda das dietas, terapias, medicamentos, tratamentos, teorias. Afinal não há uma forma do bolo que comporte a individualidade de um autista, essa receita é você que descobre.

Entre barrar e não barrar a estereotipia de seu filho, fique com a importância de conhecê-lo bem o suficiente e saber o que ele gostaria que você fizesse, você vai saber separar seu desejo do desejo dele, eu sei que vai.

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Joyce valentim
Joyce valentim
7 anos atrás

Lindo texto como sempre,adoro a cada um aprendo mais Lida com minha filha.

Andreia
Andreia
7 anos atrás

Aaaah Fausta! Que texto maravilhoso …Será que um dia terei essa maturidade? Ainda fico tão incomodada com o olhar e o julgamento das pessoas em relação a Piettra. Quero muito alcançar essa serenidade, pois sei que só assim ela se sentirá livre para ser quem é. Bjs no seu coração e no da Milena.

Mariana
Mariana
7 anos atrás

Que texto lindo Fausta. Obrigada por compartilhar.

Ânara
Ânara
7 anos atrás

Amei ouvir o texto! É realmente verdadeiro que a maturidade nos liberta! E ela também chega para nossos filhos, autistas ou não e eles tem o direito de se tornarem cada vez mais donos decsuas escolhas!

Sandra Mourão
Sandra Mourão
7 anos atrás

Olá, não sei se vc se lembra de mim, nos correspondemos há uns meses atrás!
Adoro seus textos, me trazem esperança, confiança, me fazem acreditar que dias melhores virão, que ”tudo” vai dar certo! Me emocionam profundamente!
Beijos no seu coração!

Elisabete Santos
7 anos atrás

Minha querida amiga. Como eu amo ler e ouvir os seus textos, as suas reflexões profundas e a sua própria transformação ao longo desta missão tão nobre. A sua doce voz acalma até o Jeremias! A sua sabedoria tem crescido mais e mais, e tudo isso não seria possivel se tu não fosses essa mulher com extrema sensibilidade mas forte, doce mas de implacável determinação, de grande humildade mas nobre. Amo essa leveza de seu ser, que ao longo dos anos se foi libertando dos pesos da vida impostos pela sociedade e pelos outros. O ensinamento que tu adquires da… Leia mais »

Larissa Santos
7 anos atrás

MUITO OBRIGADA!
Só tenho a agradecer cada palavra <3

Camila Rosa
Camila Rosa
7 anos atrás

Dos textos que transformam!
Obrigada, sempre!

VANESSA C CAMARGO
VANESSA C CAMARGO
7 anos atrás

Sabias palavras,… como nos faz refletir. Também passei por todas essas dúvidas, entre “deixar” ou não ela mexer as mãos, repetidas vezes. Hoje com 12 anos, minha princesa Sabrina, diminui bem os movimentos eles aparecem mais quando algo não está bem emocionalmente. Ela nunca me falou , como se sente quando percebe que está fazendo os movimentos, simplesmente para quando percebe. Nunca me disse como se sente com relação aos outros, mas já percebi que se sente acoada, nervosa,quando não consegue agir como os outros esperam. Juntas aprendemos todos os dias, com esse objetivo que você citou, ser feliz e… Leia mais »

Marcela Valadão Ferreira
Marcela Valadão Ferreira
6 anos atrás

Oi Fausta, por várias vezes arrepiei ao ler seu texto. tenho uma filha de 15 anos, autista, e me reconheci em várias falas sua. Hoje na idade da minha filha fico pensando como será na fase adulta? Ainda fará terapias? O que ficará fazendo quando sair da escola? Isso tem me deixado angustiada. Sei que o caminho certo não existe, ele se faz ao caminhar… Como você pensa a fase adulta? tem algum post a respeito?

Katiucia
Katiucia
6 anos atrás

Você tem o dom das palavras. Estou encantada com a leveza que transmite seu conhecimento. Abraços na Mi