A menina do cobertor cor de rosa


*Use fones para ouvir o áudio melhor.

– “Mãe olha para mim. “

Já sabendo que ela quer chamar a minha atenção me viro e ela está segurando o cobertor que está pronto para ser guardado. Eu já prevejo a pergunta que vai se seguir, eu já respondi a ela, sem exagero, algumas centenas de vezes.

– “De quem é esse cobertor rosa? “ – Ela pergunta, como eu previ.

– É meu, eu respondo. E essa é a resposta que eu tenho que dar, caso contrário ela vai me pedir: “fala que é seu”, daí para poupar tempo já dou a resposta que ela quer e ela continua:

– “Você me dá de presente? “

E aí chega na parte que ela gosta, eu dou uma bronca de brincadeira, dizendo que ela é uma menina sapeca que quer tudo o que é meu e que eu não vou dar coisa nenhuma…

Esse diálogo sobre o cobertor é uma das conversas matinais da Milena comigo. Sim, tem muito diálogo disfuncional por aqui, muitas perguntas repetidas exaustivamente enquanto a gente caminha, enquanto estamos juntas em casa ou em qualquer lugar.

Eu engato um ritmo de diálogo, mas a imaturidade dela me barra, pois ela não emite opiniões e ela não me pergunta de volta o que eu acho a respeito.

Às vezes, porém, o nosso diálogo segue um bom ritmo e nestes momentos ela me surpreende deliciosamente com declarações que me dizem que ela está aqui, presente, que percebe tudo o que está acontecendo e entende muito bem, mas de alguma forma ela só compartilha quando está bem e quando quer.

Minha filha, como muitas pessoas com autismo também, não é ajustada pela convenção social da boa educação, para ela não interessa se mostrar, não importa a etiqueta e sim o que ela sente e muitas vezes ela nem responde ao que a gente pergunta. Na regra geral é de bom tom que você ouça, espere, se interesse pelas opiniões e que também diga o que pensa, assim a conversa flui em um ritmo e quem dá o andamento são as pessoas que estão dialogando.

No autismo não é assim. Tenha uma longa conversa com alguém com autismo e você vai notar que você terá que dar muito mais do que recebe. A informação que você quer ou está acostumado a ter, virá com o seu esforço em entender as entrelinhas e sua capacidade de ouvir e se interessar. Mas geralmente, nós queremos falar, nós também queremos atenção e por isso a minha filha, como muitos e muitos autistas, não conseguem manter-se em diálogos longos.

– Mãe, espia, olha o que furby está fazendo…

O único brinquedo que a Mi se interessou na vida foi esse, o brinquedo interativo da hasbro que conversa com ela e por isso não exige muita imaginação. Se tornou uma mania e se tornou também um escudo.

Eu me torno o furby e meu diálogo com ela vem quando estou na voz do furby. Milena é a mãe, eu sou a avó e ela me pede para falar com ela como se eu fosse o furby, mas ainda assim tenho que dar as respostas que ela quer. Se eu estou disposta a falar sobre furby a gente fica um bom tempo falando, mas eu também sou neurotípica… não aguento me manter interessada e fico virando a direção, incrementando ou tentando incrementar a conversa, mas logo ela se distancia e a conversa termina.

Nem sempre é muito fácil responder a estas perguntas sem pé nem cabeça, mas elas trazem a tranquilidade e regulam a Milena. Onde quer que a gente esteja, nos mais diferentes ambientes eu preciso ter bengalas de mesmice que a acalmam e fazem que ela se sinta “em casa”.  Tem dias que pesa pra caramba, muitas e muitas vezes deixamos de lado uma conversa boa para nos dedicarmos aos diálogos sem nexo com a nossa filha. Muitas e muitas vezes nosso espaço é invadido pela perguntação sem fim e se nos desvencilhamos disso ela cai no mundo virtual dos vídeos do youtube ou das estereotipias.

Todo o esforço que preciso fazer é entrar no diálogo automatizado da Milena e ir acrescentando elementos e enriquecendo, mas daí ela foge. Uma forma mágica que encontrei para ela não fugir é dizer: converse comigo para aprender como conversar com os amigos.

Aí ela persiste mais, pois ela é muito carente de amigos. Seus únicos amigos, são a tia Flora e o tio Gilvan. Assim como eu, eles aceitam os diálogos sem nexo, entram nas brincadeiras e só depois acrescentam perguntas e falam deles mesmos, mas eles suportam falar com ela todos os dias, por horas seguidas. Porque ela é assim, quando cisma com algo ou alguém é com uma intensidade que não é qualquer um que aguenta.

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De resto ela tem a irmã, as avós, a Dora e a madrinha. De vez em quando ela encontra alguém a mais, porém ela liga um milhão de vezes, é inconveniente, insistente e a pessoa acaba se afastando.

Eu também tenho meus autistas. São meus amigos e também são como a Milena. Às vezes recebo ligações de madrugada, respondo a perguntas bem inadequadas e embaraçosas, mas eu não ligo, porque entendo que ter esse filtro social é difícil mesmo para gente típica e para os autistas é mais ainda. Eu entendo e gosto, mas invariavelmente as mães acabam nos afastando pois acham que os filhos estão me incomodando, ou eles mesmos se afastam porque repetem tanto as mesmas conversas que se cansam.

Acho engraçado ver no universo do autismo essa tentativa de colocar o autismo no pedestal, como se a pessoa com autismo fosse um anjo e o autismo fosse uma virtude.

Eu não vejo assim, o autismo pode ser uma diferença humana que não torna a pessoa nem melhor nem pior, assim como eu sou esquecida e não sou por isso pior que ninguém, você é jovem ou idoso e o vizinho é japonês, o carteiro é gago, a moça do mercado é vesga, sua tia é chata, a professora é vaidosa. Cada um com seu cada um que vai exigir de todos nós uma certa flexibilidade em aceitar em se ajustar.

Quanto menos a pessoa se ajusta às diferenças, mais solitária é e neste ponto o mundo virtual é uma beleza pois, quando a diferença do outro está incomodando, você desconecta e pronto.

Mas a ênfase aqui é a de sempre: minha filha é diferente, eu e você também somos e o autismo precisa ser entendido, compreendido. Não precisa ser usado como desculpa, nem como bênção, muito menos como maldição.

Acho que o autismo precisa de informação, acolhimento, enfrentamento, no sentido de tornar suas dificuldades menores para que os autistas sejam mais felizes. Mas esta tal inclusão, aceitação e acolhimento são mais do que palavras.

Outro dia em um grupo de discussão de mães e pais de autistas, alguém postou uma foto do filho e os comentários foram os de sempre: lindo, fofo, que gracinha…. Até que um adolescente que tem autismo entrou e comentou: ”nossa, ele tá bem gordo né? “ Nesta hora os adultos neurotípicos que levantam a bandeira do aceite as diferenças caíram matando no coitado do autista… ele foi xingado, agredido de todas as formas e recebeu mais comentários do que a postagem em si. Ninguém se deu ao trabalho de procurar saber quem era o autor de um comentário tão inapropriado. Minha luz de alerta se acendeu na hora, eu procurei e claro, era um asperger que deve ter se assustado bastante com tanta agressão por ele simplesmente ter dito algo que pensava. Muita gente por aí grita: aceite as diferenças, mas quer todo mundo concordando e agindo segundo sua própria cartilha.

Pois bem, é lindo ver minha filha enfrentando e vencendo suas batalhas. É maravilhoso ver que ela consegue hoje ser muito, mas muito melhor do que eu esperava quando os médicos me disseram que não sabiam o que esperar dela no futuro, mas é muito difícil conviver com suas dificuldades.

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Ela é maravilhosa e sabe disso, mas suas atitudes às vezes impulsivas, às vezes agressivas, às vezes inadequadas não são. São dificuldades e ponto. Ela é linda, ela é corajosa, ela é uma guerreira, ela me enche de orgulho, não o seu autismo não tem como me orgulhar do incômodo das perguntas incessantes, nem das lágrimas quando ela percebe suas próprias dificuldades. Eu sou partidária do dia do orgulho autista porque nesta afirmação meu alvo é o indivíduo e não a síndrome.

Os comportamentos da minha filha muitas vezes me desafiam, suas repetições me exaurem, suas manias me dão trabalho, mas ela sabe que eu a vejo além do rótulo e ela sabe que vai sempre encontrar no meu olhar a distinção do que ela é daquilo que o autismo faz ela ser.

Antes que você vá embora, quero apenas te contar que eu não escolheria outra vida se me dessem um cardápio de vidas legais. Essa é a minha filha que eu amo, essa é a minha vida em que eu lido muito bem. Destacar os momentos difíceis que vivo, não me tornam uma vítima, apenas mostram que eu estou viva e todo mundo que vive lida com dificuldades, problemas e desafios.

Quando eu ouso mostrar o lado não tão bom é apenas para deixar claro que aqui como aí, a vida se vive entre altos e baixos e que com autismo ou sem ele, cada um de nós será desafiado a sair da zona de conforto e se esforçar.

Que tenhamos todos a coragem de acolher as diferenças com menos palavras e mais ação.

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Ânara
Ânara
7 anos atrás

Ahhh Adorei! Milena está cada dia mais espontânea, como é bom vê-la assim! As unhas ficaram lindas!

Ânara
Ânara
7 anos atrás

Lindo texto! Você conseguiu ser bem realista! A verdade é que amaríamos nossos filhos até mesmo se eles tivessem nascido virados do avesso, amamos nossas crianças, neurotípicas ou não, com seu pacotinho de habilidades e dificuldades. No caso das dificuldades, passamos por situações difíceis muitas vezes. Não é fácil, não dá pra se fazer de Pollyanna e dizer que é lindo, que é uma benção.
Você e Milena nos mostram que os obstáculos são sim difíceis, algumas vezes parecem intransponíveis, mas o amor, a persistência e a tolerância que dedicamos às nossas crianças, rendem frutos maravilhosos!

Tatiana
Tatiana
7 anos atrás

precisamos disso, de ralidade, na net tem um monte de mundo cor de rosa, o nosso tem um tom bem AZUL!
não temos modelos, e por isso cada tentativa de acerto é uma ventura inédita, sim eles transformaram nossa vida de uma maneira inexorável, parte é mistério, parte é desafio mas na soma é amor ourinho…

Ju
Ju
7 anos atrás

Adoro tudo que você escreve, seu jeito meigo e leve me acalma. Vejo o autismo como você, meu filho é meu filho que eu conheço cada pedacinho, tem sua própria personalidade e tem o autismo que impõe dificuldades. Dificuldades de dialogar, de mudar de assunto, esse autismo que o faz se interessar em demasia por um determinado assunto… e vamos trabalhando essas dificuldades com paciência, persistência e fé.
Um forte abraço para vc. Acho a Mi muito linda e carinhosa. Bjs.

Cris
Cris
7 anos atrás

Adoro a forma doce e firme q vc expõe a situação, que vc lida com a Milena é com tudo o que a envolve.
E Milena, vc é uma princesa!
Bjos
Cris

Elisabete Santos
7 anos atrás

Amei ouvir e ver a vossa conversa. A Milena está cada vez mais bonita e tem umas unhas pintadas lindas demais! É prazeroso ouvir a Milena, saber o que ela gosta, o que ela pensa, ver o sorriso lindo dela. Muito bom Milena! Obrigada por partilhar este vídeo conosco 🙂 Assim, você ganha muitos amigo por aqui, viu! Amiga Cristina, como sempre, o seu texto se funde com o meu modo de pensar e agir, sinto sempre uma grande identificação contigo. Como eu queria que mais pessoas fossem assim, todos com as suas características que nos fazem seres únicos, mas… Leia mais »

Ines de Souza Dias
Ines de Souza Dias
7 anos atrás

Oi Milena!
Como faço para assistir um video da Bell no youtube?
Fiquei curiosa!
Beijo,
Inês

Ana Beatriz
Ana Beatriz
7 anos atrás

Uau, uma moça já! Me lembro que quando a fonoaudióloga me disse que o meu Nicolas era autista, eu corri pra internet pra procurar informações (quem nunca? rs) porque eu não sabia nada sobre o assunto, e seu blog foi o primeiro que encontrei. Era março de 2010 e eu passei as madrugadas daquela primeira semana lendo cada um dos seus posts desde o primeiro! Seu jeito tranquilo e leve de lidar com as situações deram o tom de como eu enfrentaria a caminhada que estava começando quando meu pequeno ainda tinha 1 ano e 9 meses e tudo era… Leia mais »

Clara
Clara
7 anos atrás

A Milena está uma mocinha muito linda!! Lindo de ver essas respostas curtas e tímidas típicas dos adolescentes. Vocês transbordam amor e admiração mútua e isso realmente é uma delícia de se ver. Bj enorme!!

cesar afif r oaquim
6 anos atrás

Adorei seu site viu?

Eu sou pai de um garoto de sete anos que ainda não fala, nossa, como é bom ler sobre pessoas que passam coisas semelhantes com as que passamos e vão em fente, em especial naqueles dias que “estamos cansados”.

Amo muito o meu pequeno, com todas as suas diferenças, repetições e coisas que as vezes me deixam louco. Acredito que sem ele minha vida não teria tanta cor, tanta intensidade.

Um beijo para as duas!