Desejo de cura

Às vezes em entrevistas ou palestras, me perguntam o que significa ter uma criança especial, como eu encaro isso, como foi quando recebi o diagnóstico?

Bom, não foi fácil é claro, mas com certeza não houve em mim o desejo de que aquela criança não fosse minha ou que ela fosse mais “normal” como as outras crianças. Eu não senti vergonha ou fracasso, não me senti nem “amaldiçoada” nem  “escolhida”, não encarei como um fardo, nada disso…

Na verdade, quando minha filha recebeu o seu diagnóstico o mais forte sentimento que surgiu em mim foi o de proteção e o segundo maior sentimento que tomou conta de mim e me causou dor foi o medo. Medo de não ser a mãe capaz de ajuda-la.

Quando um filho nasce, nasce com ele a responsabilidade de uma mãe. Decisões e posturas serão construtores da personalidade de alguém e isso é muito forte e quando alguém nasce com qualquer tipo de dificuldade para se desenvolver, estas decisões serão tomadas com muito mais peso. Será você decidindo sobre a vida de outra pessoa e o que você fizer, trará consequências para a vida dela, para sempre.

Construa uma piscina para alguém que sabe nadar e veja que você não se importará tanto com os detalhes de profundidade, mas se você constrói uma piscina para alguém que não nada ainda, todas as medidas serão pensadas considerando isso.

Quando ouço alguém dizendo que venderia a casa, daria a vida para que seu filho não fosse mais autista eu primeiramente respeito e de verdade, entendo essa colocação. Sei que é alguém que certamente enfrenta desafios diários que não podemos dimensionar e que a realidade do outro não é a minha. Porém, confesso que acho estranho pensar que alguém diga que daria tanto para que seu filho fosse diferente, quero dizer, imagina só o seu filho adolescente, chato e irritante em alguns momentos, mas totalmente apaixonante em outros e alguém chega e te diz, meu filho é perfeito, lindo, inteligente, educado, obediente e estudioso… vamos trocar de filho? Você realmente trocaria seu filho por um “modelo melhorado”? É claro que não… Seja do jeito que for seu filho é seu filho e é pensando assim que fica difícil para mim entender, mesmo respeitando totalmente, que tenha que ser diferente com um filho que tem Autismo.

Você realmente pensa que seu filho é um incômodo para você? Eu sei que não, eu sei que você coloca esse peso no Autismo e não no seu filho, mas aí mora todo o perigo pois o Autismo não define nossos filhos, mas é parte integrante do que eles são. Tenho ouvido ao longo destes anos todos os autistas que são capazes de falar sobre isso dizerem que não gostariam de ser curados se isso os fizessem perder suas características especiais.

É um conflito grande eu sei, um tema polêmico que gera discussão entre mães e desperta até uma injustificável intolerância… aqueles momentos em que todos esquecem que levantam a bandeira do “aceite as diferenças”, mas não aceitam que algumas pessoas pensem diferente…

Voltando ao ponto, se você não trocaria seu filho por nenhuma outra pessoa viva em todo o mundo, porque acha que minha filha seria para mim uma fonte dor? Porque você acha que eu preciso desejar a cura dela se essa “cura” significa que a filha que conheço dará lugar a uma outra pessoa completamente diferente, que eu nem sei como será?

Se você me diz que minha filha será mais feliz e capaz, que ela irá ser normal eu talvez me sinta tentada a pensar a respeito, mas eu vou precisar considerar que outro tipo de problema nasceria junto com esta “cura”. Sim, pois se a pessoa perfeita não existe, preciso pensar que a retirada do Autismo possa transformar totalmente a minha filha em alguém mais egoísta ou irresponsável…

Quando desejamos a “cura” estamos pensando exatamente no quê? No filho ideal? O bom trabalhador, o bom estudante, o namorado carinhoso, o marido dedicado, o chefe da empresa, a menina delicada e atenciosa? Até que ponto é o meu desejo? Todo esse conflito eu vivo e passeio nos dois terrenos, o desejo de cura e o desejo de entendimento real desta pessoa que veio neste pacote especial.

Eu quero tirar a dificuldade, quero tirar a birra, a dificuldade de aprender e quero tirar o conflito, mas eu também quero que ela tenha o olhar divergente, a memória fantástica, a forma única de ser. E quando ela começa a sofrer, desejo de novo curar…

Na verdade, quando desejamos a cura estamos sendo primeiramente humanos ao tentar proteger nosso filho e proteger a nós mesmos da dor e do desconforto de não ser aceito, mas ao mínimo sinal que a vida nos dê de levar embora nossa criança (filhos são sempre nossas crianças) nós gritamos desesperados e desejamos que aquela pessoa permaneça tal qual ela é, desde que esteja vivendo sob o nosso olhar.

Ter uma criança especial é se defrontar nossa figura nua no espelho. Todos os nossos medos e anseios, nossas fragilidades e preconceitos que nem sabíamos que existiam estão evidentes. E também a força, a garra e a determinação de lutar contra um exército se preciso for para defender esta pessoa.

É amar com força e com gana é fazer o que consegue e ir atrás do que não tem seja onde for. E conseguir.

Todos os dias em que me vejo diante de uma situação em que Milena exige aquilo que ainda não conquistei: calma, paciência e respeito real por sua condição, eu penso nas mães que choram nos hospitais e penso na vida vazia que teria sem ela a meu lado. Penso na mãe do presidiário e do viciado, na mãe que espera pelo filho que desapareceu. É aí que me refaço, me reconstruo e me capacito com a paciência entre a aceitação e o inconformismo, o melhor dos caminhos.

Por isso, quando você for para o banheiro chorar pelo Autismo, como eu fui muitas vezes e ainda vou de vez em quando, tenta trazer estas imagens para sua tela mental e eu te garanto que vai surgir uma força no lugar do consolo que você buscava e de novo com fôlego renovado, você vai sair e começar de novo.

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Eliana
Eliana
8 anos atrás

É muita sensibilidade para uma mãe só… porisso seu texto reúne os sentimentos de todas nós. Texto brilhante, como sempre.

Paula
Paula
8 anos atrás

O seu texto é belo, porém como não existe essa cura para o autismo, a resposta é uma especulação. A cura significaria mudar a essência do filho ou apenas lhe dotar de capacidades cognitivas e comportamentais que ampliariam suas possibilidades na vida? Isso significaria não amá-lo incondicionalmente ou amá-lo tanto que gostaria de abrir sua mente e fazê-lo “voar” ? E como falar em cura, se não se trata de doença? Nada do que se refere a maternidade e autismo é simples, pois tudo vai depender no grau de autismo do filho- há crianças que se auto-mutilam; da estrutura familiar,pois… Leia mais »

Ana Carolina
Ana Carolina
8 anos atrás
Reply to  Paula

Paula,adorei tua resposta mas nao posso deixar de fazer uma pequena observaçao…moro na França a um ano e meio e poss te assegurar que preferiria estar no Brasil tratando meu filho do que aqui…e nem vou discorrer a lista de queixas e dificuldades que deparo por aqui…

Paula
Paula
8 anos atrás
Reply to  Ana Carolina

Ana, as coisas na França não estão fáceis não, mas no Brasil para nós estavam mais difíceis pois tínhamos que pagar tudo ( saúde, educação, terapias)..também vejo pelo aspecto da qualidade de vida que melhorou…

Carol
Carol
8 anos atrás

Texto incrível… Que coragem… Texto honesto e digno de uma pessoa que não finge para ninguém os erros e acertos da vida!

Hendy Anna Oliveira gomes

Simplesmente maravilhoso este texto!! Tenho um blog e uma página no face com o nome de Autismo e aceitacao… Sem
Aceitacao não avançaremos!! Sem respeito pelo outro, não teremos respeito e mto menos aceitacao!!

Renata Batista dos Santos Sousa
Renata Batista dos Santos Sousa
8 anos atrás

Parabéns pela delicadeza do seu texto.

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[…] Source: Desejo de cura […]

Lari
Lari
8 anos atrás

Lindo! Chorei muito ao ler o post pois me identifiquei muito com cada palavra! Dewcobri agora q meu bb tem autismo!

viviane
viviane
8 anos atrás

isso é verdade,” montanha russa”, altos e baixos, corda-bamba,é assim que me sinto sempre, as pessoas estão olhando, os gritos, as birras, o querer atravessar a rua na frente dos carros, mexer nas maquinas de estacionamento,o não querer segurar na mão. Desde sempre notei que era diferente, meu principe lindo, meu Deus que dor enorme, eu mesma pesquisei e descobri que meu filho, tão esperado, planejado e sonhado, que veio lindo do jeito que pedi a Deus(a cara do pai) é autista leve. Desde então, tenho vivido maravilhas com meu filho se desenvolvendo, aprendendo a falar,decepções com escolas, choro, tristezas… Leia mais »

mariana duarte
mariana duarte
8 anos atrás

Sem palavras…tudo o que vivi e sinto dia após dia…parabéns

Maluisa
Maluisa
8 anos atrás

Boa noite, Fausta Cristina! Obrigada pela oportunidade de ler seus textos, escreve muito bem, “ajuda” muitas pessoas, ou melhor, semeá muito amor em cada palavra escrita. As vezes choro de emoção! Grande beijo

Ilia
Ilia
8 anos atrás

Lindo seu texto! Me deixou bastante emocionada!

Carina
Carina
8 anos atrás

Oi Fausta! Boa tarde! Lindo seus textos!! Em meio as lágrimas te peço ajuda. Tenho um filho lindo, mas tão lindo que nunca imaginei ter um bebê assim…Mas, desde o 3 mês noto que ele não interagia comigo na amamentação! Hj ele tem 10 meses e não rolou…não se arrasta…não engatinha…estou desesperada…Ele e mto bravo…chora demais…Me diz um pouco sobre como era a Milena e me ajuda…estou tao perdida! Os profissionais que levo dizem p acompanhar…mas estou surtando!